Monday, October 20, 2014

Setembro 2014: Retrato de rapaz com Mário Cláudio


Para a tertúlia de Setembro, o clube literário de Gaia saiu da livraria Velhotes pela segunda vez (a justificação foi a livraria ter um espaço pequeno que nesta altura está atravancado com manuais escolares) e reuniu no Convento Corpus Christi, junto ao Cais de Gaia. O espaço da antiga igreja, onde nos juntámos, é muito bonito e bastante apropriado para conversar sobre este livro, que foca a relação de Leonardo da Vinci com um dos seus aprendizes (Salai). No entanto, a acústica não é a melhor para se ter uma conversa e acho que se perdeu o carácter intimista proporcionado pelo espaço da livraria.
(Podem ver fotos do espaço e da tertúlia aqui e aqui.)

Nunca tinha lido nada de Mário Cláudio e não o conhecia pessoalmente. Pela experiência da leitura suspeitei que fosse bastante erudito e a tertúlia veio confirmar essa impressão. Se juntarmos o conhecimento enciclopédico ao gosto de falar, é fácil perceber como esta pode ter sido a tertúlia em que houve menos intervenções por parte dos leitores. O próprio autor apercebeu-se disso, tendo comentado no final: "Parece-me que falei demais. Gostava de vos ter ouvido. Não querem dizer mais nada?" :)
De facto, a maior parte das duas horas foram passadas a (tentar) ouvir histórias, anedotas, episódios, que o autor ia encadeando sucessivamente, lembrando-se de uns a propósito dos outros.
A partir do tema do livro, falou do Renascimento, de Miguel Ângelo, de "o grotesco" versus "o belo", de autópsias e culinária, de higiene, de sexualidade, de sodomia, de Freud, de puritanismo, da Rainha Vitória e de camilhas. A propósito da relação mestre/discípulo e da possibilidade do último suplantar o primeiro, falou de Nicolau Breyner e Herman José, do filme "All about Eve" e do próprio Leonardo da Vinci em relação ao que tinha sido seu mestre, Verrocchio.
Também falou do "Síndroma de Mamede" e ainda de como as mulheres são ardilosas nos seus esquemas quando querem prejudicar alguém ou beneficiarem-se a si próprias.

Tenho a certeza que desta vez vou deixar partes importantes da conversa de fora - por um lado, já não me lembro de tudo e, por outro, se escrevesse tudo o que me lembro, ficaria um texto demasiado longo. Vou limitar-me a escrever alguns episódios que achei mais curiosos e se acharem que um ou outro parece demasiado deslocado numa conversa sobre um livro que trata de Leonardo da Vinci, confiem que houve mesmo um encadeamento lógico de ideias até chegar lá. :)

Como já disse, Retrato de Rapaz fala da relação de Leonardo da Vinci com um dos seus aprendizes - Gian Giacomo Caprotti, mais conhecido como Salai. O autor disse que este é o segundo livro de uma trilogia que está a produzir, com o tema comum da relação entre um adulto e um jovem (criança ou adolescente). O primeiro livro falava de Bernardo Soares e de um paquete do escritório onde Pessoa trabalhava e o terceiro vai focar-se na relação de Lewis Carroll com as rapariguinhas que ele gostava de fotografar e, em particular, com a Alice que inspirou o livro do País das Maravilhas.

A motivação para este Retrato de Rapaz não foi apenas a relação de Leonardo com um rapazinho (Salai foi viver para a oficina de Leonardo com 10 anos) mas mais precisamente o facto de se tratar de uma relação mestre/discípulo. Mário Cláudio acha este tipo de relação fascinante. Enquanto a relação pai/filho é natural - o pai cria o filho, o filho cresce e substitui o pai, criando os seus filhos enquanto o próprio pai definha, num ciclo aceite como normal -, a relação mestre/discípulo é mais complexa e propensa a atritos, podendo conduzir a algo tenebroso quando o discípulo suplanta o mestre e descobre ou consegue fazer coisas que o mestre nunca soube.

A relação concreta entre Leonardo e Salai é ambígua, tanto nas referências históricas como no livro de Mário Cláudio. Salai tinha um aspecto angelical de cabelo louro aos caracóis - embora o comportamento não condissesse com a imagem (Salai quer dizer diabinho) - e serviu de modelo a alguns quadros de Leonardo, incluindo o Mona Lisa, mas não se sabe se houve uma relação física entre os dois.
Sabe-se que Leonardo nunca casou e que foi acusado uma vez de praticar sodomia, tendo sido ilibado por falta de provas. Na altura, a sodomia era considerada um crime muito grave, mas as denúncias falsas eram bastante frequentes, utilizadas anonimamente pelos inimigos do denunciado.
Freud considerava que Leonardo da Vinci era homossexual porque venerava a figura da mãe (era a mãe que ele representava cada vez que pintava uma Madonna, embora a relação muito próxima com a mãe possa ser explicada pelo facto de Leonardo ser um filho bastardo, desprezado pelo pai) e por causa de uma recordação de infância que Leonardo deixou descrita, em que uma ave lhe abria a boca e introduzia a asa por entre os lábios repetidamente, que Freud interpretou como se tratando de uma cena óbvia de sexo oral.

(O termo homossexual foi cunhado já no século XIX, em plena época vitoriana, embora no mundo da Rainha Vitória não "existisse" sexo, não se podendo sequer aludir a esse assunto. A Rainha Vitória era tão pudica, que nem queria ver as pernas das mesas descobertas e foi nessa altura que surgiu a tradição das camilhas, para cobrir decentemente as mesas até ao chão...)

Leonardo tinha uma fixação pelo grotesco (anões, corcundas, mulheres escrofulosas e desfeadas), tendo deixado muitos desenhos em que representa pessoas com estas características. Mário Cláudio chamou a atenção para o facto de Leonardo ser um homem bonito e bem apessoado e ter esta atracção pelo feio, enquanto Miguel Ângelo, que era feio e que tinha inclusive o nariz desfigurado como resultado de uma briga, vivia obcecado com a representação da beleza (corpos bem proporcionados, homens de aspecto apolíneo, etc.). De certo modo, os dois artistas eram semelhantes, sendo atraídos pelo que era estranho a cada um.

Leonardo da Vinci interessava-se por múltiplas áreas e começou inúmeros projectos, mas finalizou muito poucos. Mário Cláudio acha que ele tinha fobia do sucesso e que sofreria do chamado Síndroma de Mamede (em alusão ao atleta português que não resistia à pressão e desistia frequentemente das corridas pouco antes de cruzar a meta). Ou talvez gostasse simplesmente de sonhar e achasse que o sonho perderia a magia se fosse concretizado.

Entre as áreas sobre as quais Leonardo se debruçou contam-se a anatomia humana, para o estudo da qual recolhia cadáveres do hospital de Milão que levava para autopsiar em casa, e a culinária. Mário Cláudio teve oportunidade de consultar os códices de Leonardo Da Vinci, na Biblioteca de Milão, e encontrou algumas receitas de culinária anotadas nas mesmas folhas onde descreve autópsias. Podemos imaginá-lo facilmente a passar do cadáver para a cozinha, com a ausência de preocupações higiénicas da altura...
A propósito disto, quando Miguel Ângelo saiu de casa, para receber instrução, o pai escreveu-lhe uma carta com várias recomendações que termina assim: "E sobretudo não tomes banho!".

A escrita de Mário Cláudio é bastante complexa. O vocabulário é rico, com muitos termos pouco usuais, e as frases são longas, compostas muitas vezes de vários elementos ligados por "e"s que a mim me pareceram fora de sítio... isto levou a que a minha leitura fosse algo demorada, apesar de se tratar de um livro com apenas 139 páginas, algumas das quais ocupadas com ilustrações de Da Vinci.
Como foi o primeiro livro que li deste autor, não sei se a escrita dele é sempre assim ou se foi um estilo que ele adoptou especificamente para esta obra. Alguém apresentou a mesma dúvida na tertúlia mas o autor disse que não sabia responder: por um lado esta é a escrita dele mas, por outro, é verdade que ele tentou cobrir o texto com uma poeirazinha, uma espécie de velatura, que transmitisse de alguma forma o ambiente da época... mas não demasiado, ou sairia uma caricatura, e não era isso que pretendia.

Outro leitor perguntou se o autor tinha feito muita investigação para escrever este livro. Mário Cláudio respondeu que fez alguma mas que o livro não nasceu dessa investigação. Um livro não se resume a uma compilação de factos e não se consegue escrever "de fora para dentro". Ele já tinha este livro dentro dele há algum tempo - o ambiente, as personagens... -, fruto em parte das temporadas que passou em Itália, e fez a investigação necessária apenas para não cometer erros com pormenores históricos.

Alguém perguntou ainda se o autor, tendo escrito bastantes biografias e livros com personagens reais, fica muito ligado a essas personagens e se depois lhe custa separar-se delas. O autor respondeu que depende da personagem em causa. Quando escreveu "Amadeo" (sobre Amadeo de Souza-Cardoso), não sentiu qualquer ligação porque não gostou de aspectos do seu carácter e pensamento; quando escreveu "Guilhermina" (sobre Guilhermina Suggia) sim, sentiu-se bastante ligado e sentiu a perda como se se tratasse de uma pessoa próxima; já quando escreveu "Rosa" (sobre a ceramista Rosa Ramalho) não sentiu tanto porque via-a como a cozinheira lá de casa - sente-se a falta dos seus cozinhados mas não é o mesmo que perder uma tia ou uma avó.
[Os 3 livros referidos constituem a "Trilogia da Mão" e foram publicados em 1984, 1986 e 1988, respectivamente.]

E em resumo foi isto.


Próximo livro: O Julgamento de Deus e Outras Histórias de António Sampaio Gomes.

[Não fui à tertúlia de Outubro, pelo que o próximo livro tratado aqui será o de Novembro: A Cura de Pedro Eiras.]

Tuesday, July 29, 2014

Julho 2014: A sentinela com Richard Zimler


Na tertúlia de Julho, o clube literário de Gaia saiu pela primeira vez da livraria Velhotes e reuniu na Casa da Cultura de Gaia - a Casa Barbot - para conversar com o Richard Zimler sobre o seu último livro.
Dada a maior visibilidade do evento, quer pelo autor em questão quer pela divulgação feita pela Casa Barbot, o grupo que se juntou na sala de estilo arte nova extravasou os limites habituais do clube e incluiu muitas caras novas.

Depois da introdução do Miguel Miranda, ao autor e ao livro, em que referiu também a classificação habitual dos diferentes géneros literários, Zimler tentou definir o seu próprio género. Normalmente, os seus enredos giram à volta de um crime e incluem algum tipo de investigação - A sentinela não foge a essa regra e tem até como personagem principal um inspector da polícia judiciária - mas Zimler não gosta muito da palavra portuguesa "policial" para definir qualquer um dos seus livros, prefere a classificação correspondente da língua inglesa, "mistery". Esta forma de escrita foi a que ele sentiu ser mais adequada para falar da vida, porque a vida é feita de pequenos mistérios; não há um dia em que não nos questionemos sobre algo, mesmo que trivial: "quem é que telefonou?", "quem enviou esta carta?", "porque é que isto aconteceu?"...

A personagem principal d'A Sentinela - Henrique - sofre de distúrbio dissociativo de identidade, convivendo com uma segunda personalidade que toma conta das suas acções por períodos mais ou menos longos, sem que ele se aperceba do que acontece nesse intervalo. (É esta segunda personalidade, chamada de Gabriel por Henrique, mas que age como uma sentinela com os seus filhos, zelando para que estejam sempre em segurança, que dá o título à obra.)
O livro nasceu precisamente a partir desta ideia. Zimler tinha acabado de publicar o livro anterior e estava em Nova Iorque, na livraria Barnes&Noble, quando pegou num livro sobre este tema e ficou fascinado. A partir daí só conseguia pensar nas inúmeras possibilidades de aplicação a um romance e acabou por perceber que ia escrever este livro.
Para se preparar, leu inúmeras obras sobre o distúrbio psiquiátrico de Henrique e falou com inspectores da polícia judiciária para conseguir definir a sua rotina diária.

Alguém perguntou como é que Zimler decidiu a personalidade de Gabriel mas o autor explicou que, para ele, não é assim que a escrita funciona. Quando começa um livro, ele tem muito poucas coisas já definidas sobre a obra. À medida que vai escrevendo e desenvolvendo a história, vai percebendo melhor quem são as personagens e, quando estas ficam melhor definidas, volta atrás para acertar pormenores, adicionando algumas coisas, subtraindo outras, de maneira a tornar o todo coerente.
Foi só assim, ao escrever o livro, que percebeu como é que Gabriel tinha de ser (forte, duro, sem inibições de linguagem) para a história fazer sentido.

E o autor pode ser considerado "a sentinela", no sentido em que assume o papel de nos alertar e despertar para a realidade? Sim e não. Por um lado, o autor não começou o livro com a intenção de falar sobre a crise de valores em Portugal, mas pretendia escrever um livro realista e por isso não podia pôr a acção a decorrer em Portugal, na actualidade, sem referir a situação do país.
Por outro lado, Zimler acha que todos temos o dever de fazer o que estiver ao nosso alcance para mudar a situação e, sendo escritor, esta é a arma que ele pode utilizar.

Outro leitor perguntou se ele não teve receio de referir nomes verdadeiros de membros do governo actual. Zimler disse que não, de maneira nenhuma.
Por um lado isto está relacionado com o facto de ele ser norte-americano e ter crescido numa democracia com mais de 2 séculos - com os seus altos e baixos mas que não deixa de ser uma democracia. Na mente de Zimler não há qualquer restrição em falar de figuras públicas, nunca viveu numa ditadura, não tem nenhuma censura mental a esse respeito.
Por outro lado, Zimler considera que não corre perigo porque os nossos governantes não lêem, o que o deixa completamente fora do radar deles.
Por último, a verdade é que ele não difamou ninguém, menciona nomes mas não diz nada de concreto sobre eles que não seja verdade.
Assim, receio, só se for o de que alguém como Miguel Relvas se aproveite de ter sido mencionado no livro para obter equivalência a uma cadeira de literatura, como um leitor alertou... :)

Um tema que é transversal ao enredo d'A sentinela é o da violência (violência doméstica, violação de menores,...). Houve leitores que referiram ter-se sentido tão incomodados com algumas cenas que tiveram de fazer uma pausa antes de conseguir continuar e perguntaram ao autor onde é que ele foi buscar o conhecimento para escrever de forma tão realista.
Zimler explicou que se inspirou em parte na sua própria infância: o pai era muito violento (verbal e emocionalmente, fisicamente às vezes); a mãe era depressiva e sofria de agorafobia (quase não saía de casa e raramente se vestia sequer). Há fotografias dessa altura em que a mãe aparece com o rosto completamente vazio, como se estivesse ausente, e Zimler lembra-se de pensar, com 7 ou 8 anos, que ao regressar a casa podia encontrá-la morta.
Enquanto criança, ele sentia que a culpa tinha de ser dele: era ele que não era bom o suficiente, era ele que desiludia o pai, não lhe passava pela cabeça que o pai pudesse ser mau. Neste momento tudo isso são assuntos resolvidos mas a verdade é que crescer num ambiente de medo (independentemente das circunstâncias concretas - violência verbal, emocional, física,...) molda uma pessoa para sempre e agora basta-lhe regressar mentalmente àquele tempo para conseguir reviver as emoções que sentia e passar essa experiência para o papel.

Ainda assim, Zimler considera que o seu primeiro livro - O último cabalista de Lisboa - é muito mais violento do que este. Quando começou a escrever, ele pensava que, para falar de violência, era preciso mostrar o sangue, a dor, o sofrimento, as cicatrizes... Agora já é mais experiente e sabe que não é preciso ser tão gráfico.
Neste livro, por exemplo, em vez de descrever o filme das meninas a serem violadas, ele limita-se a falar da reacção das pessoas ao vê-lo e isso é suficiente para o leitor perceber a mensagem.
Zimler contou que aprendeu esta lição há muito tempo, num encontro sobre SIDA, em que foram partilhados muitos testemunhos pessoais. Um dos testemunhos que mais o marcou foi o de alguém que tinha perdido um amigo para a doença: essa pessoa contou que o amigo tinha passado uma temporada no hospital devido a uma série de infecções e doenças oportunistas que o fizeram perder bastante peso e o desfiguraram imenso; quando o amigo voltou a casa, o cão não o reconheceu e fugiu dele. Foi aí que Zimler percebeu que não era preciso descrever as cicatrizes nem o aspecto concreto, bastava a imagem do cão a fugir do dono para as pessoas perceberem o alcance das alterações.

A sentinela começa com um episódio que não tem continuidade no resto do enredo, em que Henrique interroga um homem que acabou de matar a esposa: o criminoso conta-lhe que tem um filho imaginário com quem faz inúmeras actividades e explica que foi a imagem desse filho que o impediu de concretizar o crime mais cedo.
Uma leitora perguntou se a intenção de escrever este episódio tinha sido a de dar uma ideia do que seria o resto do livro mas Zimler disse que não, porque na altura em que o escreveu ainda não sabia o que é que o livro ia ser exactamente. Esse primeiro episódio, e em particular o seu desfecho, serviu para o ajudar a introduzir Henrique e a transmitir-lhe a vulnerabilidade que o tornaria disponível para ser ocupado mais frequentemente por Gabriel. É verdade que o facto de pôr o criminoso a conviver com um filho imaginário se integrou bem no resto do livro, mas não foi propositado.

Já o final não podia ser outro. Zimler ainda imaginou mil e uma possibilidades para dar outra resolução à história - por exemplo, pôr Henrique a trabalhar na cozinha do restaurante onde "o mau" vai jantar e envenenar-lhe a comida, no que seria uma solução "à Dexter" como o Miguel Miranda lembrou - mas nada disso seria realista. Este é o único fim possível para este livro, porque nós sabemos que na vida real as pessoas que cometem crimes e estão bem relacionadas nunca são castigadas, nunca são consideradas culpadas e condenadas a uma sentença...

Termino com a pergunta que abriu a discussão da tertúlia: será que todos temos uma sentinela dentro de nós? Zimler acha que sim, não necessariamente na forma de um distúrbio dissociativo, claro, mas a verdade é que todos temos versões de nós próprios que nunca chegaram a existir. Por exemplo, há um Richard Zimler que nunca saiu dos Estados Unidos e que seguiu uma vida diferente; de certa forma, esse Richard Zimler que ele poderia ter sido, co-existe com este, e aparece à superfície de vez em quando, consoante o contexto.


O clube literário não vai reunir em Agosto. Volto em Setembro! :)

Próximo livro: Retrato de rapaz de Mário Cláudio.

Tuesday, June 24, 2014

Junho 2014: Não conto com Sérgio Almeida


Nunca tinha lido nada do Sérgio Almeida mas durante a tertúlia apercebi-me de que o conhecia de outro contexto. Até aí, nem a fotografia da badana me tinha feito associar o nome do autor ao do moderador habitual do Porto de Encontro, o ciclo literário mensal promovido pela Porto Editora. Foi interessante conhecer esta sua outra faceta mas, depois de me habituar a vê-lo fazer perguntas a escritores, demorei um bocadinho a ajustar o conceito de ser ele o escritor no centro da conversa. :)

O livro escolhido para a tertúlia - por enquanto ainda só editado no Brasil - é um conjunto de 15 contos, mais uma advertência e uma introdução. Segundo o autor, o título Não conto pode ter várias leituras: por um lado, remete para o suspense e ele procura que as suas histórias apresentem sempre algum elemento surpresa ou um final inesperado; por outro lado, o título sugere que talvez não se trate de contos, os textos podem muito bem ser outra coisa qualquer, ele também não gosta de definições fechadas; por último, a expressão pode ser uma referência ao facto de sermos insignificantes, de fazermos parte dos 99,9% que não contam efectivamente para decidir o rumo dos acontecimentos...

Sérgio Almeida tem como actividade principal o jornalismo, com as suas regras de escrita muito concretas a que é preciso obedecer. Escrever ficção é para ele uma forma de se libertar dessas regras e dar livre uso ao sarcasmo, à ironia e à possibilidade ilimitada de inventar. Um exercício que ele gosta de fazer é partir de algo real e alterá-lo progressivamente respondendo a uma série de "e se...?"
Este tipo de escrita acaba por ser uma necessidade fisiológica: se passar muito tempo sem escrever ficção, "ninguém o atura".

Os contos deste livro afloram variados temas, sempre com muito sarcasmo e algum nonsense. Pessoalmente, achei piada a algumas tiradas, mas confesso que de uma forma geral o livro não corresponde ao meu tipo de humor.
Um autor que Sérgio Almeida disse apreciar é Boris Vian. Eu só li um livro dele - O Outono em Pequim - há muito tempo, mas do que me lembro, consigo ver alguns paralelismos entre os estilos de ambos, embora Vian levasse o nível de absurdo dos seus enredos surreais a um patamar completamente diferente.

Quase todas as histórias de Não Conto têm pelo menos uma personagem que morre, ou é morta, ou se mata, ou pensa em matar-se - nem o Pai Natal escapa a esta senda assassina do autor. :) Há também muitas referências a religião e a Deus, sempre com um tom muito pouco reverente, que provocaram a crítica dos familiares mais crentes.
Em resposta a alguns leitores que comentaram estar habituados à sua postura sempre calma e serena e não imaginar que ele pudesse escrever assim, o autor admitiu que, comparado com os livros anteriores, este tem um humor particularmente ácido.
Ele também explicou que não se apercebeu disso quando estava a escrever o livro. Nessa altura estava tão embrenhado em cada uma das histórias que não reparou no tom que estava a usar. Só depois, quando leu o que tinha escrito, é que deu conta e ficou surpreendido, como se o texto tivesse sido escrito por outra pessoa...

Dois dos contos incluídos no livro (Paraíso Futebol Clube e Um trio de Odemira) não eram inéditos, ambos tinham sido escritos por encomenda para duas colectâneas temáticas, uma sobre futebol e a outra sobre o Porto - aliás, é por isso que o segundo tem uma localização específica, normalmente ele tenta escrever sem situar a história num local identificável.

Um pormenor incontornável do livro, que não foi da responsabilidade do autor, é o das notas de rodapé. Quando o editor lhe sugeriu incluir algumas notas que explicassem eventuais expressões portuguesas ao público brasileiro, o autor pensou que seria uma boa ideia mas, depois de ver o resultado, percebeu que tinha sido um erro.
Para além das notas que até são adequadas, há de tudo um pouco: umas que parecem subestimar a inteligência do leitor médio brasileiro, outras que acertam completamente ao lado do significado real, algumas que definem palavras com pontos de interrogação e uma que define e chama a atenção para uma gralha do texto que, de outra forma, passaria facilmente despercebida.
Percebo que o autor tenha ficado desagradado com este trabalho de edição mas acho que, neste livro em particular, as notas de rodapé não destoam completamente e acabam por introduzir uma componente humorística involuntária complementar.
Tenho de partilhar algumas pérolas:
"Os pretextos para desistir à última hora, táctica que vários estavam dispostos a seguir através de desculpas fantasiosas, cretinas ou simplesmente parvas, pareciam cada vez mais distantes."
Parvas = refeições leves e/ou pequena quantia em dinheiro.

"Fosse pelo isolamento que o rodeava ou apenas pelos estranhos ruídos que chegavam à aldeia oriundos da obscura mansarda repleta de letreiros com impronunciáveis dizeres num qualquer idioma bárbaro..."
Mansarda = despedir grosseiramente.

"Escolhi a via mais estreia e tortuosa, sei-o bem."
Estreia = inauguração; primeira vez.
Percebem o que quero dizer? :)

Em relação à tertúlia propriamente dita, para além da conversa amena com o escritor, ouvimos a leitura de alguns poemas seus e de um conto integral deste livro, contámos com a presença de uma repórter que gravou a sessão para um programa de rádio (Vadiação poética) e ainda tivemos direito a uma degustação final do livro em versão bolo de chocolate. Concordo com o autor quando diz que esta versão era bastante mais doce do que a original... :)

Se tiverem curiosidade, podem descarregar um pdf com os primeiros contos deste livro aqui, no site da editora.


Próximo livro: A Sentinela de Richard Zimler.

Monday, June 2, 2014

Maio 2014: O cónego com A. M. Pires Cabral


Esta tertúlia foi bastante diferente das anteriores.
Por um lado foi a menos concorrida - éramos 14 pessoas mas, se excluirmos o rapaz que foi convidado para ler poemas do autor e a rapariga que o vinha a acompanhar, mais os sócios da livraria que estavam no papel de anfitriões, temos um saldo líquido de 10 leitores, cinco dos quais são os organizadores do clube.
Por outro lado, e paradoxalmente, foi a que teve o autor mais consagrado. Se é praticamente desconhecido do grande público (eu incluída até há pouco tempo), a verdade é que António Manuel Pires Cabral é autor de uma vasta obra, incluindo romances, contos, teatro e poesia, e recebeu pelo menos sete prémios literários, dos quais o mais recente foi o Prémio Autores SPA 2014 para Melhor Livro de Poesia.
Talvez por antecipar a fraca adesão ao evento, a organização decidiu incluir a leitura de alguns dos poemas do autor ao longo da tertúlia, o que também foi uma novidade.

Ao fazer a apresentação, o moderador referiu em jeito de brincadeira que o autor desenvolveu uma estratégia de marketing que consiste em criar uma aura de mistério à sua volta. Ele raramente aparece em eventos públicos e foi preciso muita persuasão para o convencer a sair de Vila Real para vir à nossa tertúlia.
Mas, se isso é verdade, não será decerto por timidez do autor. AM Pires Cabral, com 72 anos, revelou-se muito conversador e um excelente contador de histórias, o que felizmente compensou a escassez de intervenções pelo lado dos leitores.

Em relação ao romance em discussão, O cónego retrata uma aldeia de Trás-os-Montes nas primeiras décadas do século XX.
O narrador (que nos fala na década de 40) é um padre recém-ordenado que acabou de ser colocado a paroquiar aquela aldeia e que fica intrigado com a história do cónego, que falecera uns anos antes e que é mencionado em quase todas as conversas que tem com os paroquianos.
Como os vários relatos sobre o cónego raramente coincidem, o jovem padre fica obcecado em perceber quem foi realmente aquele homem e o livro acaba por ser também uma reflexão sobre o que é afinal a verdade.
Um dos principais contribuintes para a reconstituição da história do cónego é o pároco anterior da aldeia, que se encontra acamado e que vai distraindo a morte entretento-se com a tarefa de contar a sua versão dos factos.

A aldeia do livro - Vilarinho dos Castelhanos - é fictícia, mas todos os outros lugares são reais e há pormenores históricos que vão aparecendo aqui e ali: a implantação da República, a tentativa de restauração da monarquia por Paiva Couceiro, as aparições de Fátima, o 28 de Maio de 1926, etc.
Em relação à parte ficcional do livro, o autor disse que, se para Camilo escrever era recordar, para si a escrita é mais fruto da imaginação do que da recordação. No entanto, há um facto central, a partir do qual o livro nasceu e cresceu, que é baseado numa história verdadeira. Na aldeia dos seus pais existiu um cónego que teve duas filhas (uma das quais veio a casar com um tio do autor) e que a certa altura foi visitado pela mãe das filhas a pedir que contribuísse mais para o seu sustento. Essa visita e a forma como a mulher foi tratada, bem como o encontro no comboio na viagem de regresso a casa e as consequências desse encontro, aconteceram tal como descritos no livro (a única diferença é que o cónego do livro teve apenas uma filha).

Uma das actividades frequentemente mencionadas no livro é a caça. O moderador perguntou ao autor se ele tem experiência de caçador, o que despoletou uma série de histórias.
O pai do autor era um grande caçador, mas deixou de o ser quando ficou cego de um olho com um tiro disparado por um amigo que não tinha reparado que havia alguém atrás da ave que tentava atingir.
Ele próprio também quis experimentar, pegou na arma do pai e saiu várias vezes a tentar a sorte. Não tinha cão, o que lhe dificultava bastante a tarefa, mas um dia lá conseguiu matar uma perdiz. No entanto, logo de seguida pensou "mas que mal é que esta perdiz me fez?" e nunca mais voltou a caçar.
Ele tem dois amigos, que são irmãos e que são grandes caçadores (e que por acaso também são padres). Os dois irmãos costumam ir caçar principalmente perdizes. Um dia estavam à caça na zona de Vimioso e não viam nenhuma perdiz. Normalmente voltavam com mais de 10 perdizes e estavam a estranhar não conseguir encontrar nenhuma. De modo que decidiram perguntar a uma velhota que andava a apanhar lenha se não havia perdizes naquela zona, ao que a mulher respondeu:
-Ele haver, havia-as, mas vêm para aí dois filhos da puta de dois padres de Vila Real que acabaram com elas!
[Peço desculpa pela linguagem mas estou a ser fiel ao relato :)]

Outro tema mencionado no livro é o da tentativa de restaurar a monarquia, com as tensões resultantes entre monárquicos e republicanos. O cónego é um defensor acérrimo da monarquia e pega em armas para apoiar Paiva Couceiro na defesa da "Monarquia do Norte", instaurada em 1919 e rechaçada pouco depois através do que ficou conhecido como a "Traulitada". Interpelado sobre a questão, o autor disse-se republicano, como o pai também já era, mas chamou-nos a atenção para o facto de que, tendo ele nascido em 1941, enquanto criança e jovem a memória traumática da Traulitada estava ainda bastante fresca e era mencionada frequentemente pelas pessoas que o rodeavam (mais ou menos como o 25 de Abril para nós). Daí ser impossível escrever um livro situado naquela altura e naquela região sem mencionar esse acontecimento histórico.

De resto, na verdade não se falou muito do livro. Muitos leitores disseram-se sem perguntas concretas, apenas com necessidade de dizer o quanto tinham gostado: admitiram com alguma vergonha que nunca tinham lido o autor mas ficaram com vontade de ler toda a sua obra; descreveram como ficaram surpreendidos com a leitura e como foram lendo o livro devagarinho para saborear melhor a descoberta e adiar o momento final o máximo possível...
Pires Cabral foi dizendo que estavam a exagerar e que não o fizessem corar, mas os elogios desta natureza sucederam-se.
O autor sente-se injustiçado com os rótulos habituais de "maior escritor de Trás-os-Montes" ou "grande escritor regionalista", que o incomodam sobremaneira. Preferia que deixassem cair o "grande" e o "maior" juntamente com a região e o rotulassem simplesmente de "escritor". É isso que ele se considera.

Em relação a influências literárias, o autor disse que se considera herdeiro de Camilo, "salvaguardadas as devidas distâncias". Aquilino é "outro dos santos a quem reza", mas Camilo é para ele o escritor português número um. E isso também se nota n'O cónego com o nome do escritor a ser frequentemente mencionado, quase sempre com o olhar desaprovador do jovem padre ao reparar na estante de alguém.

Questionado sobre se costuma ler Camilo, ele disse que sim e que também já chegou à idade em que se deixa de ler para se começar a reler os livros que foram mais marcantes. Por vezes a releitura de uma ou outra obra desilude e ele fica a pensar "Como é que eu pude gostar disto?" mas muitas outras vezes sente o mesmo prazer da primeira vez.


Próximo livro: Não conto de Sérgio Almeida.

Tuesday, May 27, 2014

Abril 2014: Revolução Paraíso com Paulo M. Morais


O livro Revolução Paraíso acompanha um conjunto de personagens fictícias na zona do Cais do Sodré, em Lisboa (Rua dos Remolares, Rua Nova do Carvalho, Praça e Igreja de S. Paulo, etc.), entre Maio de 1974 e Dezembro de 1975.
As figuras principais são o proprietário e os trabalhadores de uma gráfica, que se transforma em redacção de um novo semanário, logo após o 25 de Abril. Deste modo, a par do dia-a-dia destas personagens, vamos tendo também uma perspectiva mais global dos acontecimentos atribulados desse período, através das notícias que elas escrevem ou que lêem noutros jornais.
Esta parte está bastante completa e deixa-nos a pensar que o autor deve ter tido um trabalho enorme de pesquisa da imprensa e dos arquivos da Rádio e da RTP da época. No entanto, na tertúlia ficámos a saber que ele teve a vida facilitada porque herdou da avó uma série de pastas com recortes de jornais com as notícias que ela considerou importantes na altura - o arquivo vai desde o 25 de Abril até ao início da década de 80.
Aliás foi esta herança que o levou a escrever o livro em primeiro lugar, para aproveitar de alguma forma o trabalho meticuloso da avó e o manancial de informação que ela guardou. É claro que não pôde incluir tudo o que gostaria ou teria escrito um livro com mais de mil páginas.
Por outro lado, ele podia ter pegado nos recortes e escrito a história das elites que estiveram por trás dos acontecimentos, mas interessava-lhe mais perceber de que forma esses acontecimentos influenciavam o quotidiano do cidadão comum, daí ter situado o romance num contexto de bairro, com a tasca, os cafés, as lojas e o prostíbulo (que existiu mesmo, na “Casa Conveniente”, hoje um teatro).
Enquanto a avó recortava jornais, o avô apontava as frases que iam sendo escritas nas paredes das ruas, fazendo uma compilação que o autor também aproveitou para o livro.

Um leitor comentou que se percebia que o livro tinha sido escrito por alguém que não viveu os acontecimentos, porque conseguiu fazer um relato completamente desapaixonado e distante. Ele próprio tinha 17 anos na altura e tem a impressão que viveu várias vidas nesse ano e meio...
O autor corroborou (nasceu em 1972) e disse que também fez questão de ser o mais imparcial possível: o leitor deve chegar ao fim do livro sem saber dizer o que é o que o Paulo M. Morais pensa sobre tudo aquilo.

Para além do plano ficcional e do seu contexto histórico, o livro tem um terceiro plano, que podemos classificar de onírico e que é protagonizado pela namorada inventada do linotipista da gráfica, composta de letras recortadas a partir de palavras impressas com erros propositadamente. A certa altura, esta "mulher de letras", chamada Eva, toma vida própria e começa a contar-nos como é visitada pelos principais protagonistas dos acontecimentos pós-revolucionários e a relatar-nos as discussões que eles têm entre si sobre quem ficará com ela e que destino ela deve ter. Primeiro Spínola e Otelo, depois Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Pinheiro de Azevedo, os visitantes vão-se sucedendo e substituindo ao sabor da evolução dos acontecimentos históricos reais.
Um ponto alto destas visitas é o debate Soares-Cunhal. Enquanto o debate real durou algumas horas e foi transmitido em directo pela RTP, o do romance foi reinventado como um braço-de-ferro entre os dois líderes partidários, à mesa do apartamento de Eva, enquanto esgrimem argumentos sobre o destino que lhe deve ser dado. O braço-de-ferro termina sem que ninguém vença ou convença o adversário.

Esta parte do livro foca a utopia da revolução de Abril, "encarnada" por Eva, e o que aconteceu a essa utopia logo nos primeiros meses pós-revolução.
O autor disse que a ideia de Eva já era um projecto antigo e que ao começar o livro tinha pensado dar-lhe mais relevância e torná-la o eixo central da narrativa, mas depois as outras personagens foram tomando protagonismo e ele teve que repensar o livro e inclusivamentle alterar o título que já tinha escolhido.

Falta ainda mencionar que Eça de Queirós é uma presença constante no livro: o proprietário da gráfica e o seu melhor amigo são fãs confessos do escritor e não é por acaso que usam muitas expressões tiradas dos seus romances, chamam "Ramalhão" ao edifício onde moram e trabalham, fundam um semanário a que dão o título de "Revista de Portugal" e, de uma forma geral, parecem um Carlos da Maia e um João da Ega reencarnados e envelhecidos... Aliás, de certo modo, a história destes dois amigos d'Os Maias tem paralelismos com a revolução de Abril, na forma como começam cheios de projectos e de ideologias e acabam o livro acomodados e conformados com a realidade.

O autor é jornalista e o seu primeiro emprego foi precisamente numa gráfica de vão de escada como a retratada no livro. Ele admite que o próprio dono da gráfica tem traços inspirados no seu primeiro patrão.

Ele também disse que não pretendeu escrever um livro para ensinar história a ninguém, mas a verdade é que se aprende muito com a sua leitura. Pelo menos para pessoas da minha geração (nasci em 1977) e mais novas, que não viveram os acontecimentos e que têm uma imagem muito nebulosa do que foi o PREC, o livro consegue transportar-nos para lá e pôr-nos, só para dar um exemplo, a assistir à reportagem em directo na televisão do golpe falhado de Spínola a 11 de Março de 1975. Gostei muito dessas espreitadelas ao passado e gostei em particular do editorial escrito pelo proprietário da gráfica sobre as primeiras eleições livres, a 25 de Abril de 1975, um texto que ainda destila utopia e esperança no futuro e que imagino ter sido inspirado num editorial real da altura.

Resta falar do ambiente da tertúlia. Não éramos muitos, talvez por ter calhado a meio das férias escolares da Páscoa, mas foi muito interessante porque, para além do livro, falou-se sobretudo da Revolução e do PREC e, como os participantes são de faixas etárias e origens muito variadas, a partilha de experiências e memórias pessoais foi muito enriquecedora.

Para terminar, deixo aqui um episódio que é referido no livro e que eu não conhecia: as declarações do então primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo quando fica farto dos sequestros ao Parlamento e decide suspender o governo.
-"Não gosto de ser sequestrado. É uma coisa que me chateia, pá!"
Podem ver no youtube...


Próximo livro: O cónego de A. M. Pires Cabral.

Wednesday, May 21, 2014

Março 2014: Os olhos de Tirésias com Cristina Drios


O livro escolhido para a terceira tertúlia do clube literário foi Os olhos de Tirésias, de Cristina Drios, finalista do prémio Leya em 2012.
Tinha-o lido pouco depois de ser publicado porque a frase da capa me aguçara a curiosidade - "A vida extraordinária de um soldado português na Primeira Guerra Mundial". O pai da minha avó paterna integrou o CEP e eu, para além de me interessar por tudo o que me faça ter uma ideia mais clara do que foi a sua experiência, cada vez que ouço a minha avó contar episódios sobre o pai, reitero mentalmente o propósito vago de um dia investigar e contar a sua história.
Aquela frase na capa fez-me identificar prontamente com o livro, levando-me a querer averiguar até que ponto corresponderia ao meu "projecto" pessoal.
O livro revelou-se completamente diferente do que tinha imaginado: não é um livro sobre "a vida extraordinária de um soldado português na Primeira Guerra Mundial", quando muito será sobre a vida de uma personagem extraordinária que, por acaso, passou pela Primeira Guerra Mundial; também não é a história da experiência de guerra do avô da autora, é um romance (um bom romance) sobre um avô inventado de uma narradora inventada.
Dito isto, agradeço àquele engano ter-me levado a conhecer este livro e esta autora. Apesar de não ser o livro que esperava, gostei muito do livro que ele é efectivamente.

Eis parte do comentário que fiz na altura:
Para além do estilo próprio da escritora, que nos leva desde uma aldeia perdida na serra da Lousã até aos cenários de uma Flandres em guerra, depois de uma passagem breve por Lisboa, com uma atenção constante ao pormenor que nos faz sentir que viajámos mesmo para aquele espaço/tempo, gostei também da galeria de personagens e sobretudo das inúmeras referências culturais e históricas que vão aparecendo naturalmente no romance. A título de exemplo, a autora inventou um pai a Mateus Mateus, que vive na serra da Lousã, descende de um soldado francês e é neveiro, o que lhe permite referir levemente as invasões francesas e descrever uma actividade completamente obsoleta e quase desconhecida actualmente.
Em resumo, um romance-estreia que me convenceu e uma nova autora cuja obra vou querer acompanhar.

Reli o livro para a tertúlia e gostei muito da conversa que se proporcionou com a Cristina Drios, que é uma simpatia.
A autora começou por referir que não pegou no livro desde que acabou a última revisão, antes de ser publicado, e que por isso nós muito provavelmente saberíamos mais sobre o livro do que ela própria.

Falou-se do título, claro. Tirésias, a figura mitológica cega e vidente, pareceu-lhe o nome apropriado para esta história com várias personagens com o dom da premonição. A editora não gostou muito e insistiu que a capa tivesse pelo menos um subtítulo que dissesse algo mais sobre o conteúdo e atraísse mais leitores. Daí aquela frase um pouco enganadora da capa.
A autora contou que, na altura em que o livro saiu, também foi editada uma nova tradução da obra de teatro Les Mamelles de Tirésias de Apollinaire, em português As mamas de Tirésias. Ela não conhecia este livro e, quando o viu pela primeira vez numa livraria, junto do seu acabado de publicar, sentiu-se "roubada" do seu título perfeito e original... :)

Depois falou-se do cenário principal do livro - a Primeira Guerra Mundial - e de como faltam trabalhos de ficção nesse contexto enquanto o da Segunda Guerra é utilizado em inúmeras obras.
Essa foi uma das razões que a levou a escolhê-lo para colocar as suas personagens a interagir. Como quem leu o livro percebeu, não se trata de um relato histórico, mas a autora usou episódios da guerra e algumas personagens reais (como um certo cabo austríaco chamado Adolf e um futuro escritor de nome Erich) para enquadrar e desenvolver o enredo.
Uma questão que os leitores levantaram foi se ainda assim existiu alguma foto de um qualquer avô. Ela disse que não, que não teve nenhum familiar no CEP, e fez questão de frisar que ela não é a neta narradora.

Mas, se a história principal é inventada, todos os locais do livro são reais, desde a casa da aldeia da Lousã, inspirada numa que a própria autora possui, até à casa "Château Blanc", em Wervicq-Sud, onde as personagens do livro se reúnem. Esta casa foi mesmo requisitada para hospital de campanha durante a guerra e é verdade que Hitler esteve lá internado alguns dias, diagnosticado com cegueira histérica, antes de ser transferido para outro local.
Outra passagem verídica sobre o cabo Adolf é a caminhada de 24km, 12km em cada sentido, para ir comprar aquele livro específico sobre Berlim!

A autora explicou um pouco da génese do livro.
A ideia germinou precisamente na casa da Lousã - foi aí que nasceu a personagem Mateus Mateus que a autora resolveu levar até uma Flandres em plena Grande Guerra.
Depois, na guerra, quis juntar várias pessoas de diferentes nacionalidades e, para conseguir reunir toda a gente na mesma casa, lembrou-se desse expediente de dar o dom da vidência a algumas personagens e de colocar um médico alemão a querer explorar isso a seu favor. Ela não sabe se na Primeira Guerra isto foi utilizado mas em relação à Segunda há relatos de como eram consultadas pessoas com dons paranormais antes de decidir os cursos das operações.
Só mais tarde surgiram os capítulos na voz da neta (que a editora insistiu em colocar em itálico para não baralhar demasiado o leitor... :)). Isto aconteceu porque a autora sentiu a necessidade de trazer esta história de há cem anos para o presente, tornando-a mais próxima de um leitor actual.
E aqui, apesar de a escritora dizer não ser a neta, é verdade que se serviu da sua voz para fazer comentários com os quais se identifica.
Houve dois focados na tertúlia.
O primeiro está relacionado com a escrita do romance, quando a neta desabafa que a escrita é difícil, que os personagens são esquivos e não tomam as rédeas da história fazendo-a desenvolver-se sozinha e guiando a mão da escritora, como outros escritores afirmam que acontece.
O outro é um comentário sobre advogados, que é a profissão da autora mas não da narradora. Eu também tinha ficado surpreendida com aquele comentário nada abonatório da narradora em relação à própria autora. A autora riu-se e confirmou que foi uma espécie de auto-crítica, que na verdade ela não é advogada por vocação mas tem de ganhar a vida de alguma forma.

Os nomes das personagens não foram escolhidos à toa e reflectem muitas vezes uma determinada característica que as identifica.
O rapazinho de nariz tronchudo tem o apelido Lebecq.
O soldado inglês que é albino tem um nome a condizer - Alvin.
A enfermeira francesa Georgette tem o mesmo nome da operação que desbaratou as linhas defendidas pelo contingente português - como ela derrubou as barreiras emocionais de Mateus Mateus, acrescento eu.
[Falando de nomes, fiquei com uma dúvida que não cheguei a esclarecer: porque é que o futuro autor Erich Maria Remarque se apresenta a Émile Lebecq como Erich Kramer?
Segundo a Wikipedia, Erich Paul Remark mudou o nome para Erich Maria Remarque quando publicou A oeste nada de novo, para se dissociar de um livro anterior (Die Traumbude). Mudou Paul para Maria em memória da mãe e Remark para Remarque porque esta seria a grafia original do apelido, alterada para Remark pelo avô, no séc. XIX.
De acordo com a mesma fonte, o apelido Kramer - Remark invertido - terá sido inventado pela Alemanha Nazi, quando o autor foi perseguido e viu os seus livros proibidos e queimados, para o desacreditar, insinuando que era um nome com raízes judaicas francesas que ele tentava esconder.
Se a Cristina Drios chegar a ler isto, pode esclarecer-me por favor? Houve alguma razão para lhe chamar Kramer no livro? Sabe de fontes mais fidedignas algo mais sobre esta história? Ou foi simples confusão? Obrigada :)]

Alguém referiu que notou a influência da língua francesa na sintaxe do livro. A autora disse que frequentou o Liceu Francês dos 4 aos 18 anos, onde todas as disciplinas eram leccionadas em Francês, mesmo a Matemática ou as outras línguas estrangeiras. Ela pensa e sonha nas duas línguas e é natural que exista essa influência, ainda que nunca se tivesse apercebido dela.

Os olhos de Tirésias é o segundo livro da autora. O primeiro, intitulado Histórias Indianas, reúne um conjunto de contos inspirados numa viagem que a autora fez à Índia e venceu o Prémio Literário Cadernos do Campo Alegre «Novo Autor, Primeiro Livro» em 2012.

Neste momento, o próximo livro já está mais ou menos encaminhado e, se não mudar nada entretanto, podemos esperar um enredo passado em Itália, no início do séc. XVII, com uma personagem histórica chamada Caravaggio. Tal como em Os olhos de Tirésias, todos os cenários são reais e correspondem a locais que a autora já visitou. O interesse por Caravaggio começou numa viagem a Malta onde a autora viu alguns dos seus quadros. Ao olhá-los sentiu que os quadros a chamavam para dentro deles, como se não houvesse separação física entre a tela e o observador, como se este fizesse parte da própria cena retratada. Para além deste fascínio pela obra de Caravaggio, o facto de ele ter tido uma vida rica em eventos aproveitáveis literariamente, também pesou na decisão de o incluir no livro. :)


Próximo livro: Revolução Paraíso de Paulo M. Morais.

Sunday, May 18, 2014

Fevereiro 2014: Zero à esquerda com Manuel Jorge Marmelo


Nunca tinha lido nada de Manuel Jorge Marmelo e confesso que fiquei um bocadinho de pé atrás quando percebi que o livro escolhido pelo clube literário era uma edição de autor. No entanto, o receio revelou-se infundado logo a partir das primeiras páginas e a verdade é que fiquei agradavelmente surpreendida com a qualidade geral da escrita.
O livro reúne um conjunto de contos com o tema/cenário comum de Cabo Verde, a que o autor adicionou alguns textos que tinha publicado previamente no seu blog. Os primeiros contos são bastante mais longos e, embora em menor número, ocupam mais de metade do livro; os da segunda parte têm temas muito variados e parecem ir diminuindo de tamanho até ao final da obra (muitos têm apenas uma página). Esta organização leva a que a nossa leitura não esmoreça e até pareça ganhar velocidade na parte final.

A escrita é muito límpida e o livro lê-se muito bem mas devo dizer que nem sempre achei o enredo interessante.
Por exemplo, há um conto sobre um jogador de futebol de origem cabo-verdiana que joga pela selecção portuguesa mas que tem um pesadelo recorrente: no sonho ele integra a selecção nacional de Cabo Verde, está nos minutos finais do jogo decisivo do apuramento para o campeonato mundial, tem a hipótese de marcar o golo que lhes dará a vitória e falha... Percebo que, com este conto, o autor pretendia falar do sentido de "identidade" e dos dilemas enfrentados pelos que se encontram deslocados ou desenraizados, mas não me identifiquei com aquele drama específico. Na tertúlia, o autor explicou que tinha escrito este texto por altura do campeonato mundial de futebol pelo que achou que fazia sentido usar esse contexto para focar este assunto.

O próprio cenário de Cabo Verde também não me diz muito porque nunca visitei o país. O autor disse que esteve três vezes em Cabo Verde, em trabalho, sempre com estadias muito curtas, mas que o país lhe causou uma impressão duradoura - o cenário, a geografia física mas sobretudo a humana.
Foi assim que surgiu o primeiro conto relacionado com Cabo Verde: ao ser convidado pela Fnac para escrever um conto para uma colectânea que é editada todos os anos por altura do dia do livro, surgiu-lhe naturalmente uma história a partir da imagem que lhe ficara gravada de uma menina a vender compotas à beira da estrada - o conto Doçura deste livro. No ano seguinte voltou a ser convidado pela Fnac e escreveu um segundo conto inspirado em Cabo Verde - o conto Zero à esquerda, que dá título a este livro com uma certa auto-ironia.

Como leitora, gostei muito das inúmeras referências literárias que o livro contém.
Há um conto muito curto que é uma brincadeira inspirada em A metamorfose de Kafka: a personagem principal chama-se Chico Cáfeca (não se esqueçam de acentuar o primeiro "ca") e sente uma afinidade tão grande com as moscas e com a forma como elas se movimentam que começa gradual e inconscientemente a mover-se como elas.
Noutro conto, o narrador soube da história de Thomas Pynchon ao ler um livro de Enrique Vila-Matas e percebe que ele próprio pode ser o escritor americano que nunca aparece.
Noutro conto ainda, a personagem principal foi "roubada" a um livro de Vila-Matas - El viaje vertical. Nesse livro, a personagem acaba a viagem na ilha da Madeira, mas Manuel Jorge Marmelo ficou sempre com a ideia que daí ela viajaria para Cabo Verde e resolveu escrever essa continuação da história.
As várias referências a Enrique Vila-Matas sugeriam que pudesse ser um escritor favorito do Manuel Jorge Marmelo. Esta suspeita foi confirmada na tertúlia pelo autor, que disse ter lido todos os livros daquele escritor espanhol, incluindo as primeiras obras, que nunca chegaram a ser editadas em Portugal. De Pynchon, só leu um livro.
(Eu nunca li nada de Enrique Vila-Matas e fiquei cheia de curiosidade.)
Aqui ele também referiu que a literatura da península ibérica é a "quinta" dele; ele nunca poderia escrever, por exemplo, como o Gonçalo M. Tavares que é mais influenciado por escritores da Europa Central, como Kafka.
Quanto a escritores portugueses, ele "é do clube do Saramago" e considera que Camilo Castelo Branco foi o cultor por excelência da língua portuguesa. O Eça de Queirós tinha um mérito indiscutível no uso da ironia e na crítica social mas o Castelo Branco cultivava a língua portuguesa: todas as palavras que usamos estão lá nos livros dele (até a palavra abracadabrante, que Marmelo utilizou no título de um destes contos).

Também gostei bastante do entrelaçar constante entre ficção e realidade.
A maior parte dos contos são narrados na primeira pessoa e damos por nós frequentemente a confundir o narrador com o autor e a chegar ao fim da história sem saber se aquilo aconteceu mesmo ou se se trata de ficção.
Num dos contos, o narrador conta como soube de uma história que gostaria de imortalizar e fala dele próprio como tendo escrito alguns livros referindo títulos efectivamente publicados por Marmelo, mas o narrador do conto que estamos a ler não pode ser o autor porque tem mais de 70 anos...
No conto sobre o jogador de futebol, também são referidos nomes reais de jogadores e coisas reais que lhes aconteceram, apenas a personagem principal parece ter sido inventada.
Quando questionado sobre isto, o autor disse que realmente parte muitas vezes de coisas que aconteceram mesmo, com ele ou não, e que depois ficciona a história à volta disso.

Depois deixou-se um bocadinho este livro em particular para falar de outros assuntos.
Falou-se das edições de autor, por exemplo. O Manuel Jorge Marmelo explicou que se decidiu por esta forma de edição porque está farto do paleio das editoras sobre o que é que vende e quando é que vende. Ele disse que tem dois romances escritos e que está a trabalhar num terceiro mas a editora dele só quer publicar um para o próximo ano e ele não sabe o que fará nessa altura: escolhe à sorte um de todos os que tiver acabado? deita os outros fora?
Neste tipo de edição, ele escolhe o que e quando publica. O problema é a promoção dos livros: estando fora do circuito normal, ninguém sabe que eles existem e, mesmo com o impulso nas vendas proporcionado pelo nosso clube, Zero à esquerda ainda não vendeu quase nada.
Por outro lado, um livro dele editado "normalmente" também não vende mais de 500 a 600 exemplares. Ele só teve um best-seller que já vai na 13ª edição - As mulheres deviam vir com livro de instruções. O autor sabe que se tivesse seguido a fórmula daquele e a tivesse repetido até à exaustão, teria tido um sucesso estrondoso, mas não lhe interessa escrever esse tipo de livros. Mesmo aquele, se fosse hoje, não seria capaz de o escrever.

Na sequência desta conversa, a tertúlia entrou numa fase tipo "consulta de aconselhamento vocacional": parecia que nos tínhamos reunido ali para uma intervenção com o objectivo de animar o autor e dar-lhe força para continuar.
O autor referiu que está a viver do subsídio de desemprego, que não consegue obter rendimentos através da escrita e a única coisa que sabe fazer é escrever (o único emprego que teve foi como jornalista no Público durante 23 anos), que o subsídio de desemprego agora acaba por ser uma espécie de bolsa de desenvolvimento literário mas que quando deixar de o receber, em Dezembro próximo, não sabe o que é que há-de fazer.
E várias pessoas intervieram dizendo que ele escreve muito bem, que nunca deve deixar de escrever, a moderadora disse mesmo que nunca tinha ouvido falar dele mas que ficou fã e que agora que o descobriu ele não pode desistir de escrever. Outro leitor disse que ninguém consegue viver da escrita (só quem faça outras coisas complementares como dar cursos de escrita criativa ou escrever romances como ghostwriter), que o importante é encontrar um emprego, qualquer emprego, se não for relacionado com a escrita, ele encontrará sempre tempo para continuar a escrever...

Depois o tom da conversa voltou a ficar mais animado e falou-se de outros livros do autor, dos livros infantis, das idas a escolas e do que ele aprende sobre os próprios livros com as interpretações que as crianças lhes dão.

Nota: Uma semana depois da tertúlia, o autor ganhou o prémio literário Correntes d'Escritas 2014, com o livro Uma mentira mil vezes repetida. Imagino que isso lhe tenha insuflado algum ânimo, aumentando também a sua visibilidade e o número de vendas dos seus livros.


Próximo livro: Os olhos de Tirésias de Cristina Drios.