Monday, October 20, 2014

Setembro 2014: Retrato de rapaz com Mário Cláudio


Para a tertúlia de Setembro, o clube literário de Gaia saiu da livraria Velhotes pela segunda vez (a justificação foi a livraria ter um espaço pequeno que nesta altura está atravancado com manuais escolares) e reuniu no Convento Corpus Christi, junto ao Cais de Gaia. O espaço da antiga igreja, onde nos juntámos, é muito bonito e bastante apropriado para conversar sobre este livro, que foca a relação de Leonardo da Vinci com um dos seus aprendizes (Salai). No entanto, a acústica não é a melhor para se ter uma conversa e acho que se perdeu o carácter intimista proporcionado pelo espaço da livraria.
(Podem ver fotos do espaço e da tertúlia aqui e aqui.)

Nunca tinha lido nada de Mário Cláudio e não o conhecia pessoalmente. Pela experiência da leitura suspeitei que fosse bastante erudito e a tertúlia veio confirmar essa impressão. Se juntarmos o conhecimento enciclopédico ao gosto de falar, é fácil perceber como esta pode ter sido a tertúlia em que houve menos intervenções por parte dos leitores. O próprio autor apercebeu-se disso, tendo comentado no final: "Parece-me que falei demais. Gostava de vos ter ouvido. Não querem dizer mais nada?" :)
De facto, a maior parte das duas horas foram passadas a (tentar) ouvir histórias, anedotas, episódios, que o autor ia encadeando sucessivamente, lembrando-se de uns a propósito dos outros.
A partir do tema do livro, falou do Renascimento, de Miguel Ângelo, de "o grotesco" versus "o belo", de autópsias e culinária, de higiene, de sexualidade, de sodomia, de Freud, de puritanismo, da Rainha Vitória e de camilhas. A propósito da relação mestre/discípulo e da possibilidade do último suplantar o primeiro, falou de Nicolau Breyner e Herman José, do filme "All about Eve" e do próprio Leonardo da Vinci em relação ao que tinha sido seu mestre, Verrocchio.
Também falou do "Síndroma de Mamede" e ainda de como as mulheres são ardilosas nos seus esquemas quando querem prejudicar alguém ou beneficiarem-se a si próprias.

Tenho a certeza que desta vez vou deixar partes importantes da conversa de fora - por um lado, já não me lembro de tudo e, por outro, se escrevesse tudo o que me lembro, ficaria um texto demasiado longo. Vou limitar-me a escrever alguns episódios que achei mais curiosos e se acharem que um ou outro parece demasiado deslocado numa conversa sobre um livro que trata de Leonardo da Vinci, confiem que houve mesmo um encadeamento lógico de ideias até chegar lá. :)

Como já disse, Retrato de Rapaz fala da relação de Leonardo da Vinci com um dos seus aprendizes - Gian Giacomo Caprotti, mais conhecido como Salai. O autor disse que este é o segundo livro de uma trilogia que está a produzir, com o tema comum da relação entre um adulto e um jovem (criança ou adolescente). O primeiro livro falava de Bernardo Soares e de um paquete do escritório onde Pessoa trabalhava e o terceiro vai focar-se na relação de Lewis Carroll com as rapariguinhas que ele gostava de fotografar e, em particular, com a Alice que inspirou o livro do País das Maravilhas.

A motivação para este Retrato de Rapaz não foi apenas a relação de Leonardo com um rapazinho (Salai foi viver para a oficina de Leonardo com 10 anos) mas mais precisamente o facto de se tratar de uma relação mestre/discípulo. Mário Cláudio acha este tipo de relação fascinante. Enquanto a relação pai/filho é natural - o pai cria o filho, o filho cresce e substitui o pai, criando os seus filhos enquanto o próprio pai definha, num ciclo aceite como normal -, a relação mestre/discípulo é mais complexa e propensa a atritos, podendo conduzir a algo tenebroso quando o discípulo suplanta o mestre e descobre ou consegue fazer coisas que o mestre nunca soube.

A relação concreta entre Leonardo e Salai é ambígua, tanto nas referências históricas como no livro de Mário Cláudio. Salai tinha um aspecto angelical de cabelo louro aos caracóis - embora o comportamento não condissesse com a imagem (Salai quer dizer diabinho) - e serviu de modelo a alguns quadros de Leonardo, incluindo o Mona Lisa, mas não se sabe se houve uma relação física entre os dois.
Sabe-se que Leonardo nunca casou e que foi acusado uma vez de praticar sodomia, tendo sido ilibado por falta de provas. Na altura, a sodomia era considerada um crime muito grave, mas as denúncias falsas eram bastante frequentes, utilizadas anonimamente pelos inimigos do denunciado.
Freud considerava que Leonardo da Vinci era homossexual porque venerava a figura da mãe (era a mãe que ele representava cada vez que pintava uma Madonna, embora a relação muito próxima com a mãe possa ser explicada pelo facto de Leonardo ser um filho bastardo, desprezado pelo pai) e por causa de uma recordação de infância que Leonardo deixou descrita, em que uma ave lhe abria a boca e introduzia a asa por entre os lábios repetidamente, que Freud interpretou como se tratando de uma cena óbvia de sexo oral.

(O termo homossexual foi cunhado já no século XIX, em plena época vitoriana, embora no mundo da Rainha Vitória não "existisse" sexo, não se podendo sequer aludir a esse assunto. A Rainha Vitória era tão pudica, que nem queria ver as pernas das mesas descobertas e foi nessa altura que surgiu a tradição das camilhas, para cobrir decentemente as mesas até ao chão...)

Leonardo tinha uma fixação pelo grotesco (anões, corcundas, mulheres escrofulosas e desfeadas), tendo deixado muitos desenhos em que representa pessoas com estas características. Mário Cláudio chamou a atenção para o facto de Leonardo ser um homem bonito e bem apessoado e ter esta atracção pelo feio, enquanto Miguel Ângelo, que era feio e que tinha inclusive o nariz desfigurado como resultado de uma briga, vivia obcecado com a representação da beleza (corpos bem proporcionados, homens de aspecto apolíneo, etc.). De certo modo, os dois artistas eram semelhantes, sendo atraídos pelo que era estranho a cada um.

Leonardo da Vinci interessava-se por múltiplas áreas e começou inúmeros projectos, mas finalizou muito poucos. Mário Cláudio acha que ele tinha fobia do sucesso e que sofreria do chamado Síndroma de Mamede (em alusão ao atleta português que não resistia à pressão e desistia frequentemente das corridas pouco antes de cruzar a meta). Ou talvez gostasse simplesmente de sonhar e achasse que o sonho perderia a magia se fosse concretizado.

Entre as áreas sobre as quais Leonardo se debruçou contam-se a anatomia humana, para o estudo da qual recolhia cadáveres do hospital de Milão que levava para autopsiar em casa, e a culinária. Mário Cláudio teve oportunidade de consultar os códices de Leonardo Da Vinci, na Biblioteca de Milão, e encontrou algumas receitas de culinária anotadas nas mesmas folhas onde descreve autópsias. Podemos imaginá-lo facilmente a passar do cadáver para a cozinha, com a ausência de preocupações higiénicas da altura...
A propósito disto, quando Miguel Ângelo saiu de casa, para receber instrução, o pai escreveu-lhe uma carta com várias recomendações que termina assim: "E sobretudo não tomes banho!".

A escrita de Mário Cláudio é bastante complexa. O vocabulário é rico, com muitos termos pouco usuais, e as frases são longas, compostas muitas vezes de vários elementos ligados por "e"s que a mim me pareceram fora de sítio... isto levou a que a minha leitura fosse algo demorada, apesar de se tratar de um livro com apenas 139 páginas, algumas das quais ocupadas com ilustrações de Da Vinci.
Como foi o primeiro livro que li deste autor, não sei se a escrita dele é sempre assim ou se foi um estilo que ele adoptou especificamente para esta obra. Alguém apresentou a mesma dúvida na tertúlia mas o autor disse que não sabia responder: por um lado esta é a escrita dele mas, por outro, é verdade que ele tentou cobrir o texto com uma poeirazinha, uma espécie de velatura, que transmitisse de alguma forma o ambiente da época... mas não demasiado, ou sairia uma caricatura, e não era isso que pretendia.

Outro leitor perguntou se o autor tinha feito muita investigação para escrever este livro. Mário Cláudio respondeu que fez alguma mas que o livro não nasceu dessa investigação. Um livro não se resume a uma compilação de factos e não se consegue escrever "de fora para dentro". Ele já tinha este livro dentro dele há algum tempo - o ambiente, as personagens... -, fruto em parte das temporadas que passou em Itália, e fez a investigação necessária apenas para não cometer erros com pormenores históricos.

Alguém perguntou ainda se o autor, tendo escrito bastantes biografias e livros com personagens reais, fica muito ligado a essas personagens e se depois lhe custa separar-se delas. O autor respondeu que depende da personagem em causa. Quando escreveu "Amadeo" (sobre Amadeo de Souza-Cardoso), não sentiu qualquer ligação porque não gostou de aspectos do seu carácter e pensamento; quando escreveu "Guilhermina" (sobre Guilhermina Suggia) sim, sentiu-se bastante ligado e sentiu a perda como se se tratasse de uma pessoa próxima; já quando escreveu "Rosa" (sobre a ceramista Rosa Ramalho) não sentiu tanto porque via-a como a cozinheira lá de casa - sente-se a falta dos seus cozinhados mas não é o mesmo que perder uma tia ou uma avó.
[Os 3 livros referidos constituem a "Trilogia da Mão" e foram publicados em 1984, 1986 e 1988, respectivamente.]

E em resumo foi isto.


Próximo livro: O Julgamento de Deus e Outras Histórias de António Sampaio Gomes.

[Não fui à tertúlia de Outubro, pelo que o próximo livro tratado aqui será o de Novembro: A Cura de Pedro Eiras.]