Tuesday, July 29, 2014

Julho 2014: A sentinela com Richard Zimler


Na tertúlia de Julho, o clube literário de Gaia saiu pela primeira vez da livraria Velhotes e reuniu na Casa da Cultura de Gaia - a Casa Barbot - para conversar com o Richard Zimler sobre o seu último livro.
Dada a maior visibilidade do evento, quer pelo autor em questão quer pela divulgação feita pela Casa Barbot, o grupo que se juntou na sala de estilo arte nova extravasou os limites habituais do clube e incluiu muitas caras novas.

Depois da introdução do Miguel Miranda, ao autor e ao livro, em que referiu também a classificação habitual dos diferentes géneros literários, Zimler tentou definir o seu próprio género. Normalmente, os seus enredos giram à volta de um crime e incluem algum tipo de investigação - A sentinela não foge a essa regra e tem até como personagem principal um inspector da polícia judiciária - mas Zimler não gosta muito da palavra portuguesa "policial" para definir qualquer um dos seus livros, prefere a classificação correspondente da língua inglesa, "mistery". Esta forma de escrita foi a que ele sentiu ser mais adequada para falar da vida, porque a vida é feita de pequenos mistérios; não há um dia em que não nos questionemos sobre algo, mesmo que trivial: "quem é que telefonou?", "quem enviou esta carta?", "porque é que isto aconteceu?"...

A personagem principal d'A Sentinela - Henrique - sofre de distúrbio dissociativo de identidade, convivendo com uma segunda personalidade que toma conta das suas acções por períodos mais ou menos longos, sem que ele se aperceba do que acontece nesse intervalo. (É esta segunda personalidade, chamada de Gabriel por Henrique, mas que age como uma sentinela com os seus filhos, zelando para que estejam sempre em segurança, que dá o título à obra.)
O livro nasceu precisamente a partir desta ideia. Zimler tinha acabado de publicar o livro anterior e estava em Nova Iorque, na livraria Barnes&Noble, quando pegou num livro sobre este tema e ficou fascinado. A partir daí só conseguia pensar nas inúmeras possibilidades de aplicação a um romance e acabou por perceber que ia escrever este livro.
Para se preparar, leu inúmeras obras sobre o distúrbio psiquiátrico de Henrique e falou com inspectores da polícia judiciária para conseguir definir a sua rotina diária.

Alguém perguntou como é que Zimler decidiu a personalidade de Gabriel mas o autor explicou que, para ele, não é assim que a escrita funciona. Quando começa um livro, ele tem muito poucas coisas já definidas sobre a obra. À medida que vai escrevendo e desenvolvendo a história, vai percebendo melhor quem são as personagens e, quando estas ficam melhor definidas, volta atrás para acertar pormenores, adicionando algumas coisas, subtraindo outras, de maneira a tornar o todo coerente.
Foi só assim, ao escrever o livro, que percebeu como é que Gabriel tinha de ser (forte, duro, sem inibições de linguagem) para a história fazer sentido.

E o autor pode ser considerado "a sentinela", no sentido em que assume o papel de nos alertar e despertar para a realidade? Sim e não. Por um lado, o autor não começou o livro com a intenção de falar sobre a crise de valores em Portugal, mas pretendia escrever um livro realista e por isso não podia pôr a acção a decorrer em Portugal, na actualidade, sem referir a situação do país.
Por outro lado, Zimler acha que todos temos o dever de fazer o que estiver ao nosso alcance para mudar a situação e, sendo escritor, esta é a arma que ele pode utilizar.

Outro leitor perguntou se ele não teve receio de referir nomes verdadeiros de membros do governo actual. Zimler disse que não, de maneira nenhuma.
Por um lado isto está relacionado com o facto de ele ser norte-americano e ter crescido numa democracia com mais de 2 séculos - com os seus altos e baixos mas que não deixa de ser uma democracia. Na mente de Zimler não há qualquer restrição em falar de figuras públicas, nunca viveu numa ditadura, não tem nenhuma censura mental a esse respeito.
Por outro lado, Zimler considera que não corre perigo porque os nossos governantes não lêem, o que o deixa completamente fora do radar deles.
Por último, a verdade é que ele não difamou ninguém, menciona nomes mas não diz nada de concreto sobre eles que não seja verdade.
Assim, receio, só se for o de que alguém como Miguel Relvas se aproveite de ter sido mencionado no livro para obter equivalência a uma cadeira de literatura, como um leitor alertou... :)

Um tema que é transversal ao enredo d'A sentinela é o da violência (violência doméstica, violação de menores,...). Houve leitores que referiram ter-se sentido tão incomodados com algumas cenas que tiveram de fazer uma pausa antes de conseguir continuar e perguntaram ao autor onde é que ele foi buscar o conhecimento para escrever de forma tão realista.
Zimler explicou que se inspirou em parte na sua própria infância: o pai era muito violento (verbal e emocionalmente, fisicamente às vezes); a mãe era depressiva e sofria de agorafobia (quase não saía de casa e raramente se vestia sequer). Há fotografias dessa altura em que a mãe aparece com o rosto completamente vazio, como se estivesse ausente, e Zimler lembra-se de pensar, com 7 ou 8 anos, que ao regressar a casa podia encontrá-la morta.
Enquanto criança, ele sentia que a culpa tinha de ser dele: era ele que não era bom o suficiente, era ele que desiludia o pai, não lhe passava pela cabeça que o pai pudesse ser mau. Neste momento tudo isso são assuntos resolvidos mas a verdade é que crescer num ambiente de medo (independentemente das circunstâncias concretas - violência verbal, emocional, física,...) molda uma pessoa para sempre e agora basta-lhe regressar mentalmente àquele tempo para conseguir reviver as emoções que sentia e passar essa experiência para o papel.

Ainda assim, Zimler considera que o seu primeiro livro - O último cabalista de Lisboa - é muito mais violento do que este. Quando começou a escrever, ele pensava que, para falar de violência, era preciso mostrar o sangue, a dor, o sofrimento, as cicatrizes... Agora já é mais experiente e sabe que não é preciso ser tão gráfico.
Neste livro, por exemplo, em vez de descrever o filme das meninas a serem violadas, ele limita-se a falar da reacção das pessoas ao vê-lo e isso é suficiente para o leitor perceber a mensagem.
Zimler contou que aprendeu esta lição há muito tempo, num encontro sobre SIDA, em que foram partilhados muitos testemunhos pessoais. Um dos testemunhos que mais o marcou foi o de alguém que tinha perdido um amigo para a doença: essa pessoa contou que o amigo tinha passado uma temporada no hospital devido a uma série de infecções e doenças oportunistas que o fizeram perder bastante peso e o desfiguraram imenso; quando o amigo voltou a casa, o cão não o reconheceu e fugiu dele. Foi aí que Zimler percebeu que não era preciso descrever as cicatrizes nem o aspecto concreto, bastava a imagem do cão a fugir do dono para as pessoas perceberem o alcance das alterações.

A sentinela começa com um episódio que não tem continuidade no resto do enredo, em que Henrique interroga um homem que acabou de matar a esposa: o criminoso conta-lhe que tem um filho imaginário com quem faz inúmeras actividades e explica que foi a imagem desse filho que o impediu de concretizar o crime mais cedo.
Uma leitora perguntou se a intenção de escrever este episódio tinha sido a de dar uma ideia do que seria o resto do livro mas Zimler disse que não, porque na altura em que o escreveu ainda não sabia o que é que o livro ia ser exactamente. Esse primeiro episódio, e em particular o seu desfecho, serviu para o ajudar a introduzir Henrique e a transmitir-lhe a vulnerabilidade que o tornaria disponível para ser ocupado mais frequentemente por Gabriel. É verdade que o facto de pôr o criminoso a conviver com um filho imaginário se integrou bem no resto do livro, mas não foi propositado.

Já o final não podia ser outro. Zimler ainda imaginou mil e uma possibilidades para dar outra resolução à história - por exemplo, pôr Henrique a trabalhar na cozinha do restaurante onde "o mau" vai jantar e envenenar-lhe a comida, no que seria uma solução "à Dexter" como o Miguel Miranda lembrou - mas nada disso seria realista. Este é o único fim possível para este livro, porque nós sabemos que na vida real as pessoas que cometem crimes e estão bem relacionadas nunca são castigadas, nunca são consideradas culpadas e condenadas a uma sentença...

Termino com a pergunta que abriu a discussão da tertúlia: será que todos temos uma sentinela dentro de nós? Zimler acha que sim, não necessariamente na forma de um distúrbio dissociativo, claro, mas a verdade é que todos temos versões de nós próprios que nunca chegaram a existir. Por exemplo, há um Richard Zimler que nunca saiu dos Estados Unidos e que seguiu uma vida diferente; de certa forma, esse Richard Zimler que ele poderia ter sido, co-existe com este, e aparece à superfície de vez em quando, consoante o contexto.


O clube literário não vai reunir em Agosto. Volto em Setembro! :)

Próximo livro: Retrato de rapaz de Mário Cláudio.