Tuesday, May 27, 2014

Abril 2014: Revolução Paraíso com Paulo M. Morais


O livro Revolução Paraíso acompanha um conjunto de personagens fictícias na zona do Cais do Sodré, em Lisboa (Rua dos Remolares, Rua Nova do Carvalho, Praça e Igreja de S. Paulo, etc.), entre Maio de 1974 e Dezembro de 1975.
As figuras principais são o proprietário e os trabalhadores de uma gráfica, que se transforma em redacção de um novo semanário, logo após o 25 de Abril. Deste modo, a par do dia-a-dia destas personagens, vamos tendo também uma perspectiva mais global dos acontecimentos atribulados desse período, através das notícias que elas escrevem ou que lêem noutros jornais.
Esta parte está bastante completa e deixa-nos a pensar que o autor deve ter tido um trabalho enorme de pesquisa da imprensa e dos arquivos da Rádio e da RTP da época. No entanto, na tertúlia ficámos a saber que ele teve a vida facilitada porque herdou da avó uma série de pastas com recortes de jornais com as notícias que ela considerou importantes na altura - o arquivo vai desde o 25 de Abril até ao início da década de 80.
Aliás foi esta herança que o levou a escrever o livro em primeiro lugar, para aproveitar de alguma forma o trabalho meticuloso da avó e o manancial de informação que ela guardou. É claro que não pôde incluir tudo o que gostaria ou teria escrito um livro com mais de mil páginas.
Por outro lado, ele podia ter pegado nos recortes e escrito a história das elites que estiveram por trás dos acontecimentos, mas interessava-lhe mais perceber de que forma esses acontecimentos influenciavam o quotidiano do cidadão comum, daí ter situado o romance num contexto de bairro, com a tasca, os cafés, as lojas e o prostíbulo (que existiu mesmo, na “Casa Conveniente”, hoje um teatro).
Enquanto a avó recortava jornais, o avô apontava as frases que iam sendo escritas nas paredes das ruas, fazendo uma compilação que o autor também aproveitou para o livro.

Um leitor comentou que se percebia que o livro tinha sido escrito por alguém que não viveu os acontecimentos, porque conseguiu fazer um relato completamente desapaixonado e distante. Ele próprio tinha 17 anos na altura e tem a impressão que viveu várias vidas nesse ano e meio...
O autor corroborou (nasceu em 1972) e disse que também fez questão de ser o mais imparcial possível: o leitor deve chegar ao fim do livro sem saber dizer o que é o que o Paulo M. Morais pensa sobre tudo aquilo.

Para além do plano ficcional e do seu contexto histórico, o livro tem um terceiro plano, que podemos classificar de onírico e que é protagonizado pela namorada inventada do linotipista da gráfica, composta de letras recortadas a partir de palavras impressas com erros propositadamente. A certa altura, esta "mulher de letras", chamada Eva, toma vida própria e começa a contar-nos como é visitada pelos principais protagonistas dos acontecimentos pós-revolucionários e a relatar-nos as discussões que eles têm entre si sobre quem ficará com ela e que destino ela deve ter. Primeiro Spínola e Otelo, depois Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Pinheiro de Azevedo, os visitantes vão-se sucedendo e substituindo ao sabor da evolução dos acontecimentos históricos reais.
Um ponto alto destas visitas é o debate Soares-Cunhal. Enquanto o debate real durou algumas horas e foi transmitido em directo pela RTP, o do romance foi reinventado como um braço-de-ferro entre os dois líderes partidários, à mesa do apartamento de Eva, enquanto esgrimem argumentos sobre o destino que lhe deve ser dado. O braço-de-ferro termina sem que ninguém vença ou convença o adversário.

Esta parte do livro foca a utopia da revolução de Abril, "encarnada" por Eva, e o que aconteceu a essa utopia logo nos primeiros meses pós-revolução.
O autor disse que a ideia de Eva já era um projecto antigo e que ao começar o livro tinha pensado dar-lhe mais relevância e torná-la o eixo central da narrativa, mas depois as outras personagens foram tomando protagonismo e ele teve que repensar o livro e inclusivamentle alterar o título que já tinha escolhido.

Falta ainda mencionar que Eça de Queirós é uma presença constante no livro: o proprietário da gráfica e o seu melhor amigo são fãs confessos do escritor e não é por acaso que usam muitas expressões tiradas dos seus romances, chamam "Ramalhão" ao edifício onde moram e trabalham, fundam um semanário a que dão o título de "Revista de Portugal" e, de uma forma geral, parecem um Carlos da Maia e um João da Ega reencarnados e envelhecidos... Aliás, de certo modo, a história destes dois amigos d'Os Maias tem paralelismos com a revolução de Abril, na forma como começam cheios de projectos e de ideologias e acabam o livro acomodados e conformados com a realidade.

O autor é jornalista e o seu primeiro emprego foi precisamente numa gráfica de vão de escada como a retratada no livro. Ele admite que o próprio dono da gráfica tem traços inspirados no seu primeiro patrão.

Ele também disse que não pretendeu escrever um livro para ensinar história a ninguém, mas a verdade é que se aprende muito com a sua leitura. Pelo menos para pessoas da minha geração (nasci em 1977) e mais novas, que não viveram os acontecimentos e que têm uma imagem muito nebulosa do que foi o PREC, o livro consegue transportar-nos para lá e pôr-nos, só para dar um exemplo, a assistir à reportagem em directo na televisão do golpe falhado de Spínola a 11 de Março de 1975. Gostei muito dessas espreitadelas ao passado e gostei em particular do editorial escrito pelo proprietário da gráfica sobre as primeiras eleições livres, a 25 de Abril de 1975, um texto que ainda destila utopia e esperança no futuro e que imagino ter sido inspirado num editorial real da altura.

Resta falar do ambiente da tertúlia. Não éramos muitos, talvez por ter calhado a meio das férias escolares da Páscoa, mas foi muito interessante porque, para além do livro, falou-se sobretudo da Revolução e do PREC e, como os participantes são de faixas etárias e origens muito variadas, a partilha de experiências e memórias pessoais foi muito enriquecedora.

Para terminar, deixo aqui um episódio que é referido no livro e que eu não conhecia: as declarações do então primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo quando fica farto dos sequestros ao Parlamento e decide suspender o governo.
-"Não gosto de ser sequestrado. É uma coisa que me chateia, pá!"
Podem ver no youtube...


Próximo livro: O cónego de A. M. Pires Cabral.

Wednesday, May 21, 2014

Março 2014: Os olhos de Tirésias com Cristina Drios


O livro escolhido para a terceira tertúlia do clube literário foi Os olhos de Tirésias, de Cristina Drios, finalista do prémio Leya em 2012.
Tinha-o lido pouco depois de ser publicado porque a frase da capa me aguçara a curiosidade - "A vida extraordinária de um soldado português na Primeira Guerra Mundial". O pai da minha avó paterna integrou o CEP e eu, para além de me interessar por tudo o que me faça ter uma ideia mais clara do que foi a sua experiência, cada vez que ouço a minha avó contar episódios sobre o pai, reitero mentalmente o propósito vago de um dia investigar e contar a sua história.
Aquela frase na capa fez-me identificar prontamente com o livro, levando-me a querer averiguar até que ponto corresponderia ao meu "projecto" pessoal.
O livro revelou-se completamente diferente do que tinha imaginado: não é um livro sobre "a vida extraordinária de um soldado português na Primeira Guerra Mundial", quando muito será sobre a vida de uma personagem extraordinária que, por acaso, passou pela Primeira Guerra Mundial; também não é a história da experiência de guerra do avô da autora, é um romance (um bom romance) sobre um avô inventado de uma narradora inventada.
Dito isto, agradeço àquele engano ter-me levado a conhecer este livro e esta autora. Apesar de não ser o livro que esperava, gostei muito do livro que ele é efectivamente.

Eis parte do comentário que fiz na altura:
Para além do estilo próprio da escritora, que nos leva desde uma aldeia perdida na serra da Lousã até aos cenários de uma Flandres em guerra, depois de uma passagem breve por Lisboa, com uma atenção constante ao pormenor que nos faz sentir que viajámos mesmo para aquele espaço/tempo, gostei também da galeria de personagens e sobretudo das inúmeras referências culturais e históricas que vão aparecendo naturalmente no romance. A título de exemplo, a autora inventou um pai a Mateus Mateus, que vive na serra da Lousã, descende de um soldado francês e é neveiro, o que lhe permite referir levemente as invasões francesas e descrever uma actividade completamente obsoleta e quase desconhecida actualmente.
Em resumo, um romance-estreia que me convenceu e uma nova autora cuja obra vou querer acompanhar.

Reli o livro para a tertúlia e gostei muito da conversa que se proporcionou com a Cristina Drios, que é uma simpatia.
A autora começou por referir que não pegou no livro desde que acabou a última revisão, antes de ser publicado, e que por isso nós muito provavelmente saberíamos mais sobre o livro do que ela própria.

Falou-se do título, claro. Tirésias, a figura mitológica cega e vidente, pareceu-lhe o nome apropriado para esta história com várias personagens com o dom da premonição. A editora não gostou muito e insistiu que a capa tivesse pelo menos um subtítulo que dissesse algo mais sobre o conteúdo e atraísse mais leitores. Daí aquela frase um pouco enganadora da capa.
A autora contou que, na altura em que o livro saiu, também foi editada uma nova tradução da obra de teatro Les Mamelles de Tirésias de Apollinaire, em português As mamas de Tirésias. Ela não conhecia este livro e, quando o viu pela primeira vez numa livraria, junto do seu acabado de publicar, sentiu-se "roubada" do seu título perfeito e original... :)

Depois falou-se do cenário principal do livro - a Primeira Guerra Mundial - e de como faltam trabalhos de ficção nesse contexto enquanto o da Segunda Guerra é utilizado em inúmeras obras.
Essa foi uma das razões que a levou a escolhê-lo para colocar as suas personagens a interagir. Como quem leu o livro percebeu, não se trata de um relato histórico, mas a autora usou episódios da guerra e algumas personagens reais (como um certo cabo austríaco chamado Adolf e um futuro escritor de nome Erich) para enquadrar e desenvolver o enredo.
Uma questão que os leitores levantaram foi se ainda assim existiu alguma foto de um qualquer avô. Ela disse que não, que não teve nenhum familiar no CEP, e fez questão de frisar que ela não é a neta narradora.

Mas, se a história principal é inventada, todos os locais do livro são reais, desde a casa da aldeia da Lousã, inspirada numa que a própria autora possui, até à casa "Château Blanc", em Wervicq-Sud, onde as personagens do livro se reúnem. Esta casa foi mesmo requisitada para hospital de campanha durante a guerra e é verdade que Hitler esteve lá internado alguns dias, diagnosticado com cegueira histérica, antes de ser transferido para outro local.
Outra passagem verídica sobre o cabo Adolf é a caminhada de 24km, 12km em cada sentido, para ir comprar aquele livro específico sobre Berlim!

A autora explicou um pouco da génese do livro.
A ideia germinou precisamente na casa da Lousã - foi aí que nasceu a personagem Mateus Mateus que a autora resolveu levar até uma Flandres em plena Grande Guerra.
Depois, na guerra, quis juntar várias pessoas de diferentes nacionalidades e, para conseguir reunir toda a gente na mesma casa, lembrou-se desse expediente de dar o dom da vidência a algumas personagens e de colocar um médico alemão a querer explorar isso a seu favor. Ela não sabe se na Primeira Guerra isto foi utilizado mas em relação à Segunda há relatos de como eram consultadas pessoas com dons paranormais antes de decidir os cursos das operações.
Só mais tarde surgiram os capítulos na voz da neta (que a editora insistiu em colocar em itálico para não baralhar demasiado o leitor... :)). Isto aconteceu porque a autora sentiu a necessidade de trazer esta história de há cem anos para o presente, tornando-a mais próxima de um leitor actual.
E aqui, apesar de a escritora dizer não ser a neta, é verdade que se serviu da sua voz para fazer comentários com os quais se identifica.
Houve dois focados na tertúlia.
O primeiro está relacionado com a escrita do romance, quando a neta desabafa que a escrita é difícil, que os personagens são esquivos e não tomam as rédeas da história fazendo-a desenvolver-se sozinha e guiando a mão da escritora, como outros escritores afirmam que acontece.
O outro é um comentário sobre advogados, que é a profissão da autora mas não da narradora. Eu também tinha ficado surpreendida com aquele comentário nada abonatório da narradora em relação à própria autora. A autora riu-se e confirmou que foi uma espécie de auto-crítica, que na verdade ela não é advogada por vocação mas tem de ganhar a vida de alguma forma.

Os nomes das personagens não foram escolhidos à toa e reflectem muitas vezes uma determinada característica que as identifica.
O rapazinho de nariz tronchudo tem o apelido Lebecq.
O soldado inglês que é albino tem um nome a condizer - Alvin.
A enfermeira francesa Georgette tem o mesmo nome da operação que desbaratou as linhas defendidas pelo contingente português - como ela derrubou as barreiras emocionais de Mateus Mateus, acrescento eu.
[Falando de nomes, fiquei com uma dúvida que não cheguei a esclarecer: porque é que o futuro autor Erich Maria Remarque se apresenta a Émile Lebecq como Erich Kramer?
Segundo a Wikipedia, Erich Paul Remark mudou o nome para Erich Maria Remarque quando publicou A oeste nada de novo, para se dissociar de um livro anterior (Die Traumbude). Mudou Paul para Maria em memória da mãe e Remark para Remarque porque esta seria a grafia original do apelido, alterada para Remark pelo avô, no séc. XIX.
De acordo com a mesma fonte, o apelido Kramer - Remark invertido - terá sido inventado pela Alemanha Nazi, quando o autor foi perseguido e viu os seus livros proibidos e queimados, para o desacreditar, insinuando que era um nome com raízes judaicas francesas que ele tentava esconder.
Se a Cristina Drios chegar a ler isto, pode esclarecer-me por favor? Houve alguma razão para lhe chamar Kramer no livro? Sabe de fontes mais fidedignas algo mais sobre esta história? Ou foi simples confusão? Obrigada :)]

Alguém referiu que notou a influência da língua francesa na sintaxe do livro. A autora disse que frequentou o Liceu Francês dos 4 aos 18 anos, onde todas as disciplinas eram leccionadas em Francês, mesmo a Matemática ou as outras línguas estrangeiras. Ela pensa e sonha nas duas línguas e é natural que exista essa influência, ainda que nunca se tivesse apercebido dela.

Os olhos de Tirésias é o segundo livro da autora. O primeiro, intitulado Histórias Indianas, reúne um conjunto de contos inspirados numa viagem que a autora fez à Índia e venceu o Prémio Literário Cadernos do Campo Alegre «Novo Autor, Primeiro Livro» em 2012.

Neste momento, o próximo livro já está mais ou menos encaminhado e, se não mudar nada entretanto, podemos esperar um enredo passado em Itália, no início do séc. XVII, com uma personagem histórica chamada Caravaggio. Tal como em Os olhos de Tirésias, todos os cenários são reais e correspondem a locais que a autora já visitou. O interesse por Caravaggio começou numa viagem a Malta onde a autora viu alguns dos seus quadros. Ao olhá-los sentiu que os quadros a chamavam para dentro deles, como se não houvesse separação física entre a tela e o observador, como se este fizesse parte da própria cena retratada. Para além deste fascínio pela obra de Caravaggio, o facto de ele ter tido uma vida rica em eventos aproveitáveis literariamente, também pesou na decisão de o incluir no livro. :)


Próximo livro: Revolução Paraíso de Paulo M. Morais.

Sunday, May 18, 2014

Fevereiro 2014: Zero à esquerda com Manuel Jorge Marmelo


Nunca tinha lido nada de Manuel Jorge Marmelo e confesso que fiquei um bocadinho de pé atrás quando percebi que o livro escolhido pelo clube literário era uma edição de autor. No entanto, o receio revelou-se infundado logo a partir das primeiras páginas e a verdade é que fiquei agradavelmente surpreendida com a qualidade geral da escrita.
O livro reúne um conjunto de contos com o tema/cenário comum de Cabo Verde, a que o autor adicionou alguns textos que tinha publicado previamente no seu blog. Os primeiros contos são bastante mais longos e, embora em menor número, ocupam mais de metade do livro; os da segunda parte têm temas muito variados e parecem ir diminuindo de tamanho até ao final da obra (muitos têm apenas uma página). Esta organização leva a que a nossa leitura não esmoreça e até pareça ganhar velocidade na parte final.

A escrita é muito límpida e o livro lê-se muito bem mas devo dizer que nem sempre achei o enredo interessante.
Por exemplo, há um conto sobre um jogador de futebol de origem cabo-verdiana que joga pela selecção portuguesa mas que tem um pesadelo recorrente: no sonho ele integra a selecção nacional de Cabo Verde, está nos minutos finais do jogo decisivo do apuramento para o campeonato mundial, tem a hipótese de marcar o golo que lhes dará a vitória e falha... Percebo que, com este conto, o autor pretendia falar do sentido de "identidade" e dos dilemas enfrentados pelos que se encontram deslocados ou desenraizados, mas não me identifiquei com aquele drama específico. Na tertúlia, o autor explicou que tinha escrito este texto por altura do campeonato mundial de futebol pelo que achou que fazia sentido usar esse contexto para focar este assunto.

O próprio cenário de Cabo Verde também não me diz muito porque nunca visitei o país. O autor disse que esteve três vezes em Cabo Verde, em trabalho, sempre com estadias muito curtas, mas que o país lhe causou uma impressão duradoura - o cenário, a geografia física mas sobretudo a humana.
Foi assim que surgiu o primeiro conto relacionado com Cabo Verde: ao ser convidado pela Fnac para escrever um conto para uma colectânea que é editada todos os anos por altura do dia do livro, surgiu-lhe naturalmente uma história a partir da imagem que lhe ficara gravada de uma menina a vender compotas à beira da estrada - o conto Doçura deste livro. No ano seguinte voltou a ser convidado pela Fnac e escreveu um segundo conto inspirado em Cabo Verde - o conto Zero à esquerda, que dá título a este livro com uma certa auto-ironia.

Como leitora, gostei muito das inúmeras referências literárias que o livro contém.
Há um conto muito curto que é uma brincadeira inspirada em A metamorfose de Kafka: a personagem principal chama-se Chico Cáfeca (não se esqueçam de acentuar o primeiro "ca") e sente uma afinidade tão grande com as moscas e com a forma como elas se movimentam que começa gradual e inconscientemente a mover-se como elas.
Noutro conto, o narrador soube da história de Thomas Pynchon ao ler um livro de Enrique Vila-Matas e percebe que ele próprio pode ser o escritor americano que nunca aparece.
Noutro conto ainda, a personagem principal foi "roubada" a um livro de Vila-Matas - El viaje vertical. Nesse livro, a personagem acaba a viagem na ilha da Madeira, mas Manuel Jorge Marmelo ficou sempre com a ideia que daí ela viajaria para Cabo Verde e resolveu escrever essa continuação da história.
As várias referências a Enrique Vila-Matas sugeriam que pudesse ser um escritor favorito do Manuel Jorge Marmelo. Esta suspeita foi confirmada na tertúlia pelo autor, que disse ter lido todos os livros daquele escritor espanhol, incluindo as primeiras obras, que nunca chegaram a ser editadas em Portugal. De Pynchon, só leu um livro.
(Eu nunca li nada de Enrique Vila-Matas e fiquei cheia de curiosidade.)
Aqui ele também referiu que a literatura da península ibérica é a "quinta" dele; ele nunca poderia escrever, por exemplo, como o Gonçalo M. Tavares que é mais influenciado por escritores da Europa Central, como Kafka.
Quanto a escritores portugueses, ele "é do clube do Saramago" e considera que Camilo Castelo Branco foi o cultor por excelência da língua portuguesa. O Eça de Queirós tinha um mérito indiscutível no uso da ironia e na crítica social mas o Castelo Branco cultivava a língua portuguesa: todas as palavras que usamos estão lá nos livros dele (até a palavra abracadabrante, que Marmelo utilizou no título de um destes contos).

Também gostei bastante do entrelaçar constante entre ficção e realidade.
A maior parte dos contos são narrados na primeira pessoa e damos por nós frequentemente a confundir o narrador com o autor e a chegar ao fim da história sem saber se aquilo aconteceu mesmo ou se se trata de ficção.
Num dos contos, o narrador conta como soube de uma história que gostaria de imortalizar e fala dele próprio como tendo escrito alguns livros referindo títulos efectivamente publicados por Marmelo, mas o narrador do conto que estamos a ler não pode ser o autor porque tem mais de 70 anos...
No conto sobre o jogador de futebol, também são referidos nomes reais de jogadores e coisas reais que lhes aconteceram, apenas a personagem principal parece ter sido inventada.
Quando questionado sobre isto, o autor disse que realmente parte muitas vezes de coisas que aconteceram mesmo, com ele ou não, e que depois ficciona a história à volta disso.

Depois deixou-se um bocadinho este livro em particular para falar de outros assuntos.
Falou-se das edições de autor, por exemplo. O Manuel Jorge Marmelo explicou que se decidiu por esta forma de edição porque está farto do paleio das editoras sobre o que é que vende e quando é que vende. Ele disse que tem dois romances escritos e que está a trabalhar num terceiro mas a editora dele só quer publicar um para o próximo ano e ele não sabe o que fará nessa altura: escolhe à sorte um de todos os que tiver acabado? deita os outros fora?
Neste tipo de edição, ele escolhe o que e quando publica. O problema é a promoção dos livros: estando fora do circuito normal, ninguém sabe que eles existem e, mesmo com o impulso nas vendas proporcionado pelo nosso clube, Zero à esquerda ainda não vendeu quase nada.
Por outro lado, um livro dele editado "normalmente" também não vende mais de 500 a 600 exemplares. Ele só teve um best-seller que já vai na 13ª edição - As mulheres deviam vir com livro de instruções. O autor sabe que se tivesse seguido a fórmula daquele e a tivesse repetido até à exaustão, teria tido um sucesso estrondoso, mas não lhe interessa escrever esse tipo de livros. Mesmo aquele, se fosse hoje, não seria capaz de o escrever.

Na sequência desta conversa, a tertúlia entrou numa fase tipo "consulta de aconselhamento vocacional": parecia que nos tínhamos reunido ali para uma intervenção com o objectivo de animar o autor e dar-lhe força para continuar.
O autor referiu que está a viver do subsídio de desemprego, que não consegue obter rendimentos através da escrita e a única coisa que sabe fazer é escrever (o único emprego que teve foi como jornalista no Público durante 23 anos), que o subsídio de desemprego agora acaba por ser uma espécie de bolsa de desenvolvimento literário mas que quando deixar de o receber, em Dezembro próximo, não sabe o que é que há-de fazer.
E várias pessoas intervieram dizendo que ele escreve muito bem, que nunca deve deixar de escrever, a moderadora disse mesmo que nunca tinha ouvido falar dele mas que ficou fã e que agora que o descobriu ele não pode desistir de escrever. Outro leitor disse que ninguém consegue viver da escrita (só quem faça outras coisas complementares como dar cursos de escrita criativa ou escrever romances como ghostwriter), que o importante é encontrar um emprego, qualquer emprego, se não for relacionado com a escrita, ele encontrará sempre tempo para continuar a escrever...

Depois o tom da conversa voltou a ficar mais animado e falou-se de outros livros do autor, dos livros infantis, das idas a escolas e do que ele aprende sobre os próprios livros com as interpretações que as crianças lhes dão.

Nota: Uma semana depois da tertúlia, o autor ganhou o prémio literário Correntes d'Escritas 2014, com o livro Uma mentira mil vezes repetida. Imagino que isso lhe tenha insuflado algum ânimo, aumentando também a sua visibilidade e o número de vendas dos seus livros.


Próximo livro: Os olhos de Tirésias de Cristina Drios.

Thursday, May 15, 2014

Janeiro 2014: Debaixo de algum céu com Nuno Camarneiro


Nuno Camarneiro nasceu no mesmo ano que eu e ambos frequentámos a Universidade de Coimbra. Ele estudou Engenharia Física, eu Ciências Farmacêuticas; ele fez parte do GEFAC, eu do CMUC. Com certeza que passámos um pelo outro algumas vezes, se não noutras ocasiões, pelo menos no edifício da AAC, onde ambos tínhamos ensaios, ou nos bastidores do TAGV, em noites de Sarau Académico.
No entanto, os nossos caminhos nunca se chegaram a cruzar enquanto estudantes de Coimbra. Isso só aconteceu agora, cerca de 12 anos depois, em Vila Nova de Gaia, onde as voltas do destino me puseram a morar e a frequentar um clube literário para o qual ele foi convidado na qualidade de escritor de renome.

Entretanto já soubera da existência do autor pelo Facebook, através de amigos comuns que são seus conterrâneos e que eu conheci em Coimbra. Foi por intermédio deles que eu soube em 2011 que um tal de Nuno Camarneiro publicara um livro intitulado No meu peito não cabem pássaros. Na altura o título da obra intrigou-me e fiquei com vontade de a ler, embora, por alguma razão, tivesse assumido que seria um livro com uma certa componente de divulgação científica, ou pelo menos relacionado com história da ciência (preconceito por se tratar de um engenheiro físico? induzido por má interpretação da sinopse que falava de cometas e de 3 génios do início do séc. XX?).
Por isso fiquei tão surpreendida quando comprei o livro e o comecei efectivamente a ler - surpreendida com o conteúdo, cativada pela escrita extremamente poética e deslumbrada com as imagens invocadas por determinadas passagens...
Em 2012, quando foi anunciado que o prémio Leya tinha sido ganho por Nuno Camarneiro com Debaixo de algum céu, as expectativas que criei em relação a este livro não podiam ter ficado mais elevadas.
No entanto, talvez por isso, o livro não me encantou da mesma forma que o primeiro. O comentário que fiz depois da leitura, em Julho de 2013, foi este:

"O livro está muito bem escrito, nada a apontar aí. Lê-se muito bem, tem muitas pérolas daquelas que nos fazem repensar as coisas e que dão boas citações, e também oferece o que é prometido - uma semana na vida dos habitantes de um prédio à beira-mar.
O problema é que, apesar de tudo isso, não fiquei encantada com a leitura e não estou a conseguir identificar o problema...
Será o narrador demasiado interveniente, sempre a filosofar sobre tudo e sobre nada, que não deixa o enredo fluir e não nos deixa aproximar o suficiente para nos envolvermos com as várias personagens?
Ou será o esquema da narrativa, dividida em 8 dias e que em cada dia salta constantemente de personagem em personagem para acompanharmos a vida de cada uma, nem que seja só para dizer que está a almoçar ou a ver televisão?
Ou será simplesmente por ter lido antes o No meu peito não cabem pássaros? Ao comparar os dois sinto que este, apesar de igualmente bem escrito, é mais banal, com um propósito menos ousado e menos ambicioso."

Quando Debaixo de algum céu foi escolhido para a 1ª sessão do clube literário, reli-o para estar mais preparada para a tertúlia e é engraçado que desta segunda vez consegui apreciá-lo um bocadinho mais, provavelmente porque já sabia o que aconteceria às personagens e pude lê-lo só pela escrita, sem prestar grande atenção ao enredo.

A tertúlia foi muito enriquecedora, não só porque permitiu a partilha de leituras e interpretações de diferentes leitores, mas sobretudo porque possibilitou o confronto daquelas com as intenções do próprio autor.

Quase todos os leitores presentes teceram rasgados elogios ao livro e referiram passagens em particular que os tinham marcado (nisso o livro é rico, sem dúvida).
Também se discutiu se se trata de um livro triste ou não: as opiniões dividiram-se, mas o autor considera que não porque, apesar de algumas cenas mais dramáticas, as personagens não ficam deprimidas nem desistem de viver (ele não acha que o suicídio de Beatriz tenha sido um acto de desespero, mas sim de procura de tranquilidade).

Uma leitora fez paralelismos entre o livro e o Purgatório de Dante: sete inquilinos, em sete apartamentos, ao longo de uma semana, que tentam de alguma forma resolver as suas vidas. O autor concordou com a correspondência e disse que mesmo os nomes das personagens tinham sido retirados de Dante e que, ao desenhá-las tinha atribuído um pecado a cada uma - esse pecado nem sempre é muito evidente mas ajudou-o a defini-las.

Referiu-se a simplicidade da estrutura narrativa. O autor concordou e disse considerar que não se deve acrescentar complexidade ao que já a tem. Os temas abordados já são tão complexos - nós, as nossas vidas, as nossas relações - que ele acha que não faz sentido criar uma obra críptica ou esotérica que interponha uma barreira quase intransponível entre o leitor e a narrativa. Milan Kundera é um autor que gosta muito de ler e que tem precisamente este estilo.

O autor comparou este livro com o primeiro. Segundo ele, enquanto o No meu peito não cabem pássaros resultou de um trabalho mais introspectivo, em que tentou responder às velhas questões - Quem sou eu? O que é que me inquieta? - entrando na pele de três personagens igualmente introspectivas, este livro já foi uma tentativa de olhar para fora, para "o outro", perguntando-se "Como é que é ser-se uma jovem mãe? Ou um padre? Ou uma senhora viúva? Ou um senhor reformado? Ou um adolescente?"
Ele disse ser bastante observador no dia-a-dia, perguntando-se frequentemente o que é que determinada pessoa estará a pensar ou que problemas terá na sua vida. Como é bolseiro de pós-doutoramento na Universidade de Aveiro mas dá aulas na Universidade Portucalense, no Porto, viaja frequentemente de comboio entre as duas cidades e costuma tirar apontamentos sobre coisas interessantes que observa nos outros passageiros ou frases que os ouve dizer.

O livro fala bastante de Deus e inclui cenas relacionadas com o próprio rito da Eucaristia (leituras, cânticos, homilias...), o que levou alguém a perguntar qual era a relação do autor com a religião. Ele disse que teve uma educação católica, como todos naquela altura e naquele meio, mas que, crendo ou não em Deus, há perguntas que só se podem fazer a Ele - enquanto entidade que sabe tudo e observa de fora com uma perspectiva global - e que, por isso, Deus pode ser um instrumento muito interessante em literatura.
Além disso, considera que a Bíblia tem partes de grande beleza poética e literária e lê-a com frequência, particularmente livros como o Apocalipse, os Evangelhos, o Eclesiastes, etc.

O autor também referiu que o livro era para se ter chamado "Nem Sol nem Calma Alguma", que é uma expressão do Apocalipse, mas quando decidiu enviá-lo para o Concurso do Prémio Leya teve de pensar noutro título porque já tinha mencionado aquele numa entrevista ao DN e o manuscrito submetido a concurso não poderia ser identificável. Depois de saber que tinha ganho, ainda tentou voltar ao título anterior mas não conseguiu.
Encontrei a entrevista do DN aqui.
A citação do Apocalipse é
"Nunca mais terão fome, nunca mais terão sede; nem sol nem calma alguma cairá sobre eles. Porque o Cordeiro que está no meio do trono os apascentará, e lhes servirá de guia para as fontes das águas da vida; e Deus limpará de seus olhos toda a lágrima." Apocalipse 7:16,17
(Encontrei-a na página de Deus do Facebook. E perguntam vocês: mas Deus também está no Facebook? Claro! Pois se Ele está em todo o lado! ;))"

Resta-me mencionar um pequeno pormenor que me incomodou um pouco ao longo da leitura e que não esclareci com a releitura. Não tive coragem de introduzir a questão na tertúlia porque me pareceu um bocadinho "mesquinha" quando comparada com os assuntos sérios que se estavam a debater. Refiro-me ao que me pareceu uma falha de coerência no enredo.
Para os que leram o livro, não sei se se lembram da história de Beatriz, a inquilina do 3º Dto que regressa ao apartamento no primeiro dia, depois de uma ausência prolongada (por onde terá andado?), e que teve uma relação com o padre Daniel.
As pistas que nos vão sendo dadas levam-nos a perceber que Beatriz se relacionou com Daniel depois da morte do marido e antes de sair do apartamento, um ano antes, mas também é referido que o padre Daniel está a preparar a homilia da missa de Natal pela primeira vez, o que indica que ele chegou ali depois do último Natal e que estará no prédio há menos de um ano... Então quando é que aconteceu esse relacionamento? Existe um intervalo de tempo entre a chegada do padre Daniel e a partida de Beatriz?
Talvez o autor venha a ler este texto e ainda me esclareça a este respeito. :)

Também gostava de ter sabido mais pormenores sobre a história de Beatriz e do marido. De todos os inquilinos é a que fica mais subentendida e com mais lacunas. Na verdade acho que foi isso que tornou este livro menos cativante para mim: o facto de o autor não ter a preocupação de contar a história daquelas pessoas, mas apenas de mostrar oito dias da sua vida. Com No meu peito não cabem pássaros não existiu esse problema porque não havia propriamente um enredo que nos fizesse impacientar com as divagações poético-filosóficas do autor.


Próximo livro: Zero à esquerda de Manuel Jorge Marmelo.