Thursday, May 15, 2014

Janeiro 2014: Debaixo de algum céu com Nuno Camarneiro


Nuno Camarneiro nasceu no mesmo ano que eu e ambos frequentámos a Universidade de Coimbra. Ele estudou Engenharia Física, eu Ciências Farmacêuticas; ele fez parte do GEFAC, eu do CMUC. Com certeza que passámos um pelo outro algumas vezes, se não noutras ocasiões, pelo menos no edifício da AAC, onde ambos tínhamos ensaios, ou nos bastidores do TAGV, em noites de Sarau Académico.
No entanto, os nossos caminhos nunca se chegaram a cruzar enquanto estudantes de Coimbra. Isso só aconteceu agora, cerca de 12 anos depois, em Vila Nova de Gaia, onde as voltas do destino me puseram a morar e a frequentar um clube literário para o qual ele foi convidado na qualidade de escritor de renome.

Entretanto já soubera da existência do autor pelo Facebook, através de amigos comuns que são seus conterrâneos e que eu conheci em Coimbra. Foi por intermédio deles que eu soube em 2011 que um tal de Nuno Camarneiro publicara um livro intitulado No meu peito não cabem pássaros. Na altura o título da obra intrigou-me e fiquei com vontade de a ler, embora, por alguma razão, tivesse assumido que seria um livro com uma certa componente de divulgação científica, ou pelo menos relacionado com história da ciência (preconceito por se tratar de um engenheiro físico? induzido por má interpretação da sinopse que falava de cometas e de 3 génios do início do séc. XX?).
Por isso fiquei tão surpreendida quando comprei o livro e o comecei efectivamente a ler - surpreendida com o conteúdo, cativada pela escrita extremamente poética e deslumbrada com as imagens invocadas por determinadas passagens...
Em 2012, quando foi anunciado que o prémio Leya tinha sido ganho por Nuno Camarneiro com Debaixo de algum céu, as expectativas que criei em relação a este livro não podiam ter ficado mais elevadas.
No entanto, talvez por isso, o livro não me encantou da mesma forma que o primeiro. O comentário que fiz depois da leitura, em Julho de 2013, foi este:

"O livro está muito bem escrito, nada a apontar aí. Lê-se muito bem, tem muitas pérolas daquelas que nos fazem repensar as coisas e que dão boas citações, e também oferece o que é prometido - uma semana na vida dos habitantes de um prédio à beira-mar.
O problema é que, apesar de tudo isso, não fiquei encantada com a leitura e não estou a conseguir identificar o problema...
Será o narrador demasiado interveniente, sempre a filosofar sobre tudo e sobre nada, que não deixa o enredo fluir e não nos deixa aproximar o suficiente para nos envolvermos com as várias personagens?
Ou será o esquema da narrativa, dividida em 8 dias e que em cada dia salta constantemente de personagem em personagem para acompanharmos a vida de cada uma, nem que seja só para dizer que está a almoçar ou a ver televisão?
Ou será simplesmente por ter lido antes o No meu peito não cabem pássaros? Ao comparar os dois sinto que este, apesar de igualmente bem escrito, é mais banal, com um propósito menos ousado e menos ambicioso."

Quando Debaixo de algum céu foi escolhido para a 1ª sessão do clube literário, reli-o para estar mais preparada para a tertúlia e é engraçado que desta segunda vez consegui apreciá-lo um bocadinho mais, provavelmente porque já sabia o que aconteceria às personagens e pude lê-lo só pela escrita, sem prestar grande atenção ao enredo.

A tertúlia foi muito enriquecedora, não só porque permitiu a partilha de leituras e interpretações de diferentes leitores, mas sobretudo porque possibilitou o confronto daquelas com as intenções do próprio autor.

Quase todos os leitores presentes teceram rasgados elogios ao livro e referiram passagens em particular que os tinham marcado (nisso o livro é rico, sem dúvida).
Também se discutiu se se trata de um livro triste ou não: as opiniões dividiram-se, mas o autor considera que não porque, apesar de algumas cenas mais dramáticas, as personagens não ficam deprimidas nem desistem de viver (ele não acha que o suicídio de Beatriz tenha sido um acto de desespero, mas sim de procura de tranquilidade).

Uma leitora fez paralelismos entre o livro e o Purgatório de Dante: sete inquilinos, em sete apartamentos, ao longo de uma semana, que tentam de alguma forma resolver as suas vidas. O autor concordou com a correspondência e disse que mesmo os nomes das personagens tinham sido retirados de Dante e que, ao desenhá-las tinha atribuído um pecado a cada uma - esse pecado nem sempre é muito evidente mas ajudou-o a defini-las.

Referiu-se a simplicidade da estrutura narrativa. O autor concordou e disse considerar que não se deve acrescentar complexidade ao que já a tem. Os temas abordados já são tão complexos - nós, as nossas vidas, as nossas relações - que ele acha que não faz sentido criar uma obra críptica ou esotérica que interponha uma barreira quase intransponível entre o leitor e a narrativa. Milan Kundera é um autor que gosta muito de ler e que tem precisamente este estilo.

O autor comparou este livro com o primeiro. Segundo ele, enquanto o No meu peito não cabem pássaros resultou de um trabalho mais introspectivo, em que tentou responder às velhas questões - Quem sou eu? O que é que me inquieta? - entrando na pele de três personagens igualmente introspectivas, este livro já foi uma tentativa de olhar para fora, para "o outro", perguntando-se "Como é que é ser-se uma jovem mãe? Ou um padre? Ou uma senhora viúva? Ou um senhor reformado? Ou um adolescente?"
Ele disse ser bastante observador no dia-a-dia, perguntando-se frequentemente o que é que determinada pessoa estará a pensar ou que problemas terá na sua vida. Como é bolseiro de pós-doutoramento na Universidade de Aveiro mas dá aulas na Universidade Portucalense, no Porto, viaja frequentemente de comboio entre as duas cidades e costuma tirar apontamentos sobre coisas interessantes que observa nos outros passageiros ou frases que os ouve dizer.

O livro fala bastante de Deus e inclui cenas relacionadas com o próprio rito da Eucaristia (leituras, cânticos, homilias...), o que levou alguém a perguntar qual era a relação do autor com a religião. Ele disse que teve uma educação católica, como todos naquela altura e naquele meio, mas que, crendo ou não em Deus, há perguntas que só se podem fazer a Ele - enquanto entidade que sabe tudo e observa de fora com uma perspectiva global - e que, por isso, Deus pode ser um instrumento muito interessante em literatura.
Além disso, considera que a Bíblia tem partes de grande beleza poética e literária e lê-a com frequência, particularmente livros como o Apocalipse, os Evangelhos, o Eclesiastes, etc.

O autor também referiu que o livro era para se ter chamado "Nem Sol nem Calma Alguma", que é uma expressão do Apocalipse, mas quando decidiu enviá-lo para o Concurso do Prémio Leya teve de pensar noutro título porque já tinha mencionado aquele numa entrevista ao DN e o manuscrito submetido a concurso não poderia ser identificável. Depois de saber que tinha ganho, ainda tentou voltar ao título anterior mas não conseguiu.
Encontrei a entrevista do DN aqui.
A citação do Apocalipse é
"Nunca mais terão fome, nunca mais terão sede; nem sol nem calma alguma cairá sobre eles. Porque o Cordeiro que está no meio do trono os apascentará, e lhes servirá de guia para as fontes das águas da vida; e Deus limpará de seus olhos toda a lágrima." Apocalipse 7:16,17
(Encontrei-a na página de Deus do Facebook. E perguntam vocês: mas Deus também está no Facebook? Claro! Pois se Ele está em todo o lado! ;))"

Resta-me mencionar um pequeno pormenor que me incomodou um pouco ao longo da leitura e que não esclareci com a releitura. Não tive coragem de introduzir a questão na tertúlia porque me pareceu um bocadinho "mesquinha" quando comparada com os assuntos sérios que se estavam a debater. Refiro-me ao que me pareceu uma falha de coerência no enredo.
Para os que leram o livro, não sei se se lembram da história de Beatriz, a inquilina do 3º Dto que regressa ao apartamento no primeiro dia, depois de uma ausência prolongada (por onde terá andado?), e que teve uma relação com o padre Daniel.
As pistas que nos vão sendo dadas levam-nos a perceber que Beatriz se relacionou com Daniel depois da morte do marido e antes de sair do apartamento, um ano antes, mas também é referido que o padre Daniel está a preparar a homilia da missa de Natal pela primeira vez, o que indica que ele chegou ali depois do último Natal e que estará no prédio há menos de um ano... Então quando é que aconteceu esse relacionamento? Existe um intervalo de tempo entre a chegada do padre Daniel e a partida de Beatriz?
Talvez o autor venha a ler este texto e ainda me esclareça a este respeito. :)

Também gostava de ter sabido mais pormenores sobre a história de Beatriz e do marido. De todos os inquilinos é a que fica mais subentendida e com mais lacunas. Na verdade acho que foi isso que tornou este livro menos cativante para mim: o facto de o autor não ter a preocupação de contar a história daquelas pessoas, mas apenas de mostrar oito dias da sua vida. Com No meu peito não cabem pássaros não existiu esse problema porque não havia propriamente um enredo que nos fizesse impacientar com as divagações poético-filosóficas do autor.


Próximo livro: Zero à esquerda de Manuel Jorge Marmelo.

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