Sunday, May 18, 2014

Fevereiro 2014: Zero à esquerda com Manuel Jorge Marmelo


Nunca tinha lido nada de Manuel Jorge Marmelo e confesso que fiquei um bocadinho de pé atrás quando percebi que o livro escolhido pelo clube literário era uma edição de autor. No entanto, o receio revelou-se infundado logo a partir das primeiras páginas e a verdade é que fiquei agradavelmente surpreendida com a qualidade geral da escrita.
O livro reúne um conjunto de contos com o tema/cenário comum de Cabo Verde, a que o autor adicionou alguns textos que tinha publicado previamente no seu blog. Os primeiros contos são bastante mais longos e, embora em menor número, ocupam mais de metade do livro; os da segunda parte têm temas muito variados e parecem ir diminuindo de tamanho até ao final da obra (muitos têm apenas uma página). Esta organização leva a que a nossa leitura não esmoreça e até pareça ganhar velocidade na parte final.

A escrita é muito límpida e o livro lê-se muito bem mas devo dizer que nem sempre achei o enredo interessante.
Por exemplo, há um conto sobre um jogador de futebol de origem cabo-verdiana que joga pela selecção portuguesa mas que tem um pesadelo recorrente: no sonho ele integra a selecção nacional de Cabo Verde, está nos minutos finais do jogo decisivo do apuramento para o campeonato mundial, tem a hipótese de marcar o golo que lhes dará a vitória e falha... Percebo que, com este conto, o autor pretendia falar do sentido de "identidade" e dos dilemas enfrentados pelos que se encontram deslocados ou desenraizados, mas não me identifiquei com aquele drama específico. Na tertúlia, o autor explicou que tinha escrito este texto por altura do campeonato mundial de futebol pelo que achou que fazia sentido usar esse contexto para focar este assunto.

O próprio cenário de Cabo Verde também não me diz muito porque nunca visitei o país. O autor disse que esteve três vezes em Cabo Verde, em trabalho, sempre com estadias muito curtas, mas que o país lhe causou uma impressão duradoura - o cenário, a geografia física mas sobretudo a humana.
Foi assim que surgiu o primeiro conto relacionado com Cabo Verde: ao ser convidado pela Fnac para escrever um conto para uma colectânea que é editada todos os anos por altura do dia do livro, surgiu-lhe naturalmente uma história a partir da imagem que lhe ficara gravada de uma menina a vender compotas à beira da estrada - o conto Doçura deste livro. No ano seguinte voltou a ser convidado pela Fnac e escreveu um segundo conto inspirado em Cabo Verde - o conto Zero à esquerda, que dá título a este livro com uma certa auto-ironia.

Como leitora, gostei muito das inúmeras referências literárias que o livro contém.
Há um conto muito curto que é uma brincadeira inspirada em A metamorfose de Kafka: a personagem principal chama-se Chico Cáfeca (não se esqueçam de acentuar o primeiro "ca") e sente uma afinidade tão grande com as moscas e com a forma como elas se movimentam que começa gradual e inconscientemente a mover-se como elas.
Noutro conto, o narrador soube da história de Thomas Pynchon ao ler um livro de Enrique Vila-Matas e percebe que ele próprio pode ser o escritor americano que nunca aparece.
Noutro conto ainda, a personagem principal foi "roubada" a um livro de Vila-Matas - El viaje vertical. Nesse livro, a personagem acaba a viagem na ilha da Madeira, mas Manuel Jorge Marmelo ficou sempre com a ideia que daí ela viajaria para Cabo Verde e resolveu escrever essa continuação da história.
As várias referências a Enrique Vila-Matas sugeriam que pudesse ser um escritor favorito do Manuel Jorge Marmelo. Esta suspeita foi confirmada na tertúlia pelo autor, que disse ter lido todos os livros daquele escritor espanhol, incluindo as primeiras obras, que nunca chegaram a ser editadas em Portugal. De Pynchon, só leu um livro.
(Eu nunca li nada de Enrique Vila-Matas e fiquei cheia de curiosidade.)
Aqui ele também referiu que a literatura da península ibérica é a "quinta" dele; ele nunca poderia escrever, por exemplo, como o Gonçalo M. Tavares que é mais influenciado por escritores da Europa Central, como Kafka.
Quanto a escritores portugueses, ele "é do clube do Saramago" e considera que Camilo Castelo Branco foi o cultor por excelência da língua portuguesa. O Eça de Queirós tinha um mérito indiscutível no uso da ironia e na crítica social mas o Castelo Branco cultivava a língua portuguesa: todas as palavras que usamos estão lá nos livros dele (até a palavra abracadabrante, que Marmelo utilizou no título de um destes contos).

Também gostei bastante do entrelaçar constante entre ficção e realidade.
A maior parte dos contos são narrados na primeira pessoa e damos por nós frequentemente a confundir o narrador com o autor e a chegar ao fim da história sem saber se aquilo aconteceu mesmo ou se se trata de ficção.
Num dos contos, o narrador conta como soube de uma história que gostaria de imortalizar e fala dele próprio como tendo escrito alguns livros referindo títulos efectivamente publicados por Marmelo, mas o narrador do conto que estamos a ler não pode ser o autor porque tem mais de 70 anos...
No conto sobre o jogador de futebol, também são referidos nomes reais de jogadores e coisas reais que lhes aconteceram, apenas a personagem principal parece ter sido inventada.
Quando questionado sobre isto, o autor disse que realmente parte muitas vezes de coisas que aconteceram mesmo, com ele ou não, e que depois ficciona a história à volta disso.

Depois deixou-se um bocadinho este livro em particular para falar de outros assuntos.
Falou-se das edições de autor, por exemplo. O Manuel Jorge Marmelo explicou que se decidiu por esta forma de edição porque está farto do paleio das editoras sobre o que é que vende e quando é que vende. Ele disse que tem dois romances escritos e que está a trabalhar num terceiro mas a editora dele só quer publicar um para o próximo ano e ele não sabe o que fará nessa altura: escolhe à sorte um de todos os que tiver acabado? deita os outros fora?
Neste tipo de edição, ele escolhe o que e quando publica. O problema é a promoção dos livros: estando fora do circuito normal, ninguém sabe que eles existem e, mesmo com o impulso nas vendas proporcionado pelo nosso clube, Zero à esquerda ainda não vendeu quase nada.
Por outro lado, um livro dele editado "normalmente" também não vende mais de 500 a 600 exemplares. Ele só teve um best-seller que já vai na 13ª edição - As mulheres deviam vir com livro de instruções. O autor sabe que se tivesse seguido a fórmula daquele e a tivesse repetido até à exaustão, teria tido um sucesso estrondoso, mas não lhe interessa escrever esse tipo de livros. Mesmo aquele, se fosse hoje, não seria capaz de o escrever.

Na sequência desta conversa, a tertúlia entrou numa fase tipo "consulta de aconselhamento vocacional": parecia que nos tínhamos reunido ali para uma intervenção com o objectivo de animar o autor e dar-lhe força para continuar.
O autor referiu que está a viver do subsídio de desemprego, que não consegue obter rendimentos através da escrita e a única coisa que sabe fazer é escrever (o único emprego que teve foi como jornalista no Público durante 23 anos), que o subsídio de desemprego agora acaba por ser uma espécie de bolsa de desenvolvimento literário mas que quando deixar de o receber, em Dezembro próximo, não sabe o que é que há-de fazer.
E várias pessoas intervieram dizendo que ele escreve muito bem, que nunca deve deixar de escrever, a moderadora disse mesmo que nunca tinha ouvido falar dele mas que ficou fã e que agora que o descobriu ele não pode desistir de escrever. Outro leitor disse que ninguém consegue viver da escrita (só quem faça outras coisas complementares como dar cursos de escrita criativa ou escrever romances como ghostwriter), que o importante é encontrar um emprego, qualquer emprego, se não for relacionado com a escrita, ele encontrará sempre tempo para continuar a escrever...

Depois o tom da conversa voltou a ficar mais animado e falou-se de outros livros do autor, dos livros infantis, das idas a escolas e do que ele aprende sobre os próprios livros com as interpretações que as crianças lhes dão.

Nota: Uma semana depois da tertúlia, o autor ganhou o prémio literário Correntes d'Escritas 2014, com o livro Uma mentira mil vezes repetida. Imagino que isso lhe tenha insuflado algum ânimo, aumentando também a sua visibilidade e o número de vendas dos seus livros.


Próximo livro: Os olhos de Tirésias de Cristina Drios.

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