Tuesday, June 24, 2014

Junho 2014: Não conto com Sérgio Almeida


Nunca tinha lido nada do Sérgio Almeida mas durante a tertúlia apercebi-me de que o conhecia de outro contexto. Até aí, nem a fotografia da badana me tinha feito associar o nome do autor ao do moderador habitual do Porto de Encontro, o ciclo literário mensal promovido pela Porto Editora. Foi interessante conhecer esta sua outra faceta mas, depois de me habituar a vê-lo fazer perguntas a escritores, demorei um bocadinho a ajustar o conceito de ser ele o escritor no centro da conversa. :)

O livro escolhido para a tertúlia - por enquanto ainda só editado no Brasil - é um conjunto de 15 contos, mais uma advertência e uma introdução. Segundo o autor, o título Não conto pode ter várias leituras: por um lado, remete para o suspense e ele procura que as suas histórias apresentem sempre algum elemento surpresa ou um final inesperado; por outro lado, o título sugere que talvez não se trate de contos, os textos podem muito bem ser outra coisa qualquer, ele também não gosta de definições fechadas; por último, a expressão pode ser uma referência ao facto de sermos insignificantes, de fazermos parte dos 99,9% que não contam efectivamente para decidir o rumo dos acontecimentos...

Sérgio Almeida tem como actividade principal o jornalismo, com as suas regras de escrita muito concretas a que é preciso obedecer. Escrever ficção é para ele uma forma de se libertar dessas regras e dar livre uso ao sarcasmo, à ironia e à possibilidade ilimitada de inventar. Um exercício que ele gosta de fazer é partir de algo real e alterá-lo progressivamente respondendo a uma série de "e se...?"
Este tipo de escrita acaba por ser uma necessidade fisiológica: se passar muito tempo sem escrever ficção, "ninguém o atura".

Os contos deste livro afloram variados temas, sempre com muito sarcasmo e algum nonsense. Pessoalmente, achei piada a algumas tiradas, mas confesso que de uma forma geral o livro não corresponde ao meu tipo de humor.
Um autor que Sérgio Almeida disse apreciar é Boris Vian. Eu só li um livro dele - O Outono em Pequim - há muito tempo, mas do que me lembro, consigo ver alguns paralelismos entre os estilos de ambos, embora Vian levasse o nível de absurdo dos seus enredos surreais a um patamar completamente diferente.

Quase todas as histórias de Não Conto têm pelo menos uma personagem que morre, ou é morta, ou se mata, ou pensa em matar-se - nem o Pai Natal escapa a esta senda assassina do autor. :) Há também muitas referências a religião e a Deus, sempre com um tom muito pouco reverente, que provocaram a crítica dos familiares mais crentes.
Em resposta a alguns leitores que comentaram estar habituados à sua postura sempre calma e serena e não imaginar que ele pudesse escrever assim, o autor admitiu que, comparado com os livros anteriores, este tem um humor particularmente ácido.
Ele também explicou que não se apercebeu disso quando estava a escrever o livro. Nessa altura estava tão embrenhado em cada uma das histórias que não reparou no tom que estava a usar. Só depois, quando leu o que tinha escrito, é que deu conta e ficou surpreendido, como se o texto tivesse sido escrito por outra pessoa...

Dois dos contos incluídos no livro (Paraíso Futebol Clube e Um trio de Odemira) não eram inéditos, ambos tinham sido escritos por encomenda para duas colectâneas temáticas, uma sobre futebol e a outra sobre o Porto - aliás, é por isso que o segundo tem uma localização específica, normalmente ele tenta escrever sem situar a história num local identificável.

Um pormenor incontornável do livro, que não foi da responsabilidade do autor, é o das notas de rodapé. Quando o editor lhe sugeriu incluir algumas notas que explicassem eventuais expressões portuguesas ao público brasileiro, o autor pensou que seria uma boa ideia mas, depois de ver o resultado, percebeu que tinha sido um erro.
Para além das notas que até são adequadas, há de tudo um pouco: umas que parecem subestimar a inteligência do leitor médio brasileiro, outras que acertam completamente ao lado do significado real, algumas que definem palavras com pontos de interrogação e uma que define e chama a atenção para uma gralha do texto que, de outra forma, passaria facilmente despercebida.
Percebo que o autor tenha ficado desagradado com este trabalho de edição mas acho que, neste livro em particular, as notas de rodapé não destoam completamente e acabam por introduzir uma componente humorística involuntária complementar.
Tenho de partilhar algumas pérolas:
"Os pretextos para desistir à última hora, táctica que vários estavam dispostos a seguir através de desculpas fantasiosas, cretinas ou simplesmente parvas, pareciam cada vez mais distantes."
Parvas = refeições leves e/ou pequena quantia em dinheiro.

"Fosse pelo isolamento que o rodeava ou apenas pelos estranhos ruídos que chegavam à aldeia oriundos da obscura mansarda repleta de letreiros com impronunciáveis dizeres num qualquer idioma bárbaro..."
Mansarda = despedir grosseiramente.

"Escolhi a via mais estreia e tortuosa, sei-o bem."
Estreia = inauguração; primeira vez.
Percebem o que quero dizer? :)

Em relação à tertúlia propriamente dita, para além da conversa amena com o escritor, ouvimos a leitura de alguns poemas seus e de um conto integral deste livro, contámos com a presença de uma repórter que gravou a sessão para um programa de rádio (Vadiação poética) e ainda tivemos direito a uma degustação final do livro em versão bolo de chocolate. Concordo com o autor quando diz que esta versão era bastante mais doce do que a original... :)

Se tiverem curiosidade, podem descarregar um pdf com os primeiros contos deste livro aqui, no site da editora.


Próximo livro: A Sentinela de Richard Zimler.

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